Ainda que tardia, legem habemus
Em artigo escrito para o portal Teleco, o ex-ministro das Comunicações e ex-presidente da Anatel, Juarez Quadros do Nascimento discorre sobre o novo momento das Telecomunicações com a sanção da Lei 13.879/19, pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Leia a íntegra do texto feito por Quadros.
Na última década, os serviços de telecomunicações se apresentavam cada vez mais convergentes, porém a legislação setorial brasileira se mantinha divergente e o Estado não se empenhava na reforma legal necessária ao pareamento entre as crescentes inovações do mercado e da tecnologia. Ainda que tardia, legem habemus.
Tardia, por que essa reforma poderia ter ocorrido há pelo menos 10 anos. Seja porque no Brasil a telefonia fixa só cresceu até 2014, quando acumulou 45 milhões de terminais; seja porque até agosto/2019 já reduziu para 35 milhões. Mundialmente a telefonia fixa cresceu até 2006, quando acumulou 1,261 bilhão de terminais e após esse ano passou a decrescer. Mas, ainda é tempo, uma vez que os contratos de concessão extinguir-se-ão por advento do termo contratual em 2025.
A reforma que altera a Lei 9.472/1997, denominada Lei Geral de Telecomunicações (LGT), tenta encaminhar equação para várias questões, incluindo a dos bens reversíveis vinculados às concessões de telefonia fixa. A discussão sobre esse tema vem desde 2005, quando foi assegurado às concessionárias o direito à prorrogação única por vinte anos (2006 a 2025). Desde então, tem sido colocada como um fetiche, nos termos da expressão atribuída ao filósofo e economista Karl Marx. Qualquer semelhança do desdobramento dessa questão com uma maratona será mera coincidência, pois ainda resta saber como e quando ocorrerá o seu final.
A LGT, no artigo 102 dispõe que a extinção da concessão transmitirá automaticamente à União a posse dos bens reversíveis. E no seu parágrafo único, que a reversão dos bens, antes de expirado o prazo contratual, importará pagamento de indenização pelas parcelas de investimentos a eles vinculados, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido. Por sua vez, o artigo 112 da LGT dispõe que a concessão extinguir-se-á por advento do termo contratual, encampação, caducidade, rescisão e anulação. E no parágrafo único, que a extinção devolve à União os direitos e deveres relativos à prestação do serviço. Atenção, esses artigos da LGT, bem como outros, continuam em vigor.
Na era da Inteligência Artificial, a adaptação das outorgas de concessão de telefonia fixa para autorização, ainda que complexa, se insere no moderno contexto legal. Afinal de contas, tais concessões, dada as inovações mercadológica e tecnológica, são mais sujeitas à obsolescência do que as concessões de outros setores, devido à especificidade de parte dos seus ativos vinculados. Assim, importantes alterações estão dispostas na reforma da LGT.
Com a Lei reformada, mediante solicitação da concessionária, a adaptação do instrumento de concessão para autorização; condicionada à observância de compromissos, obrigações e garantias; implicará em um valor econômico associado à adaptação da outorga a ser determinado pela Anatel, com indicação da metodologia e dos critérios de valoração.
O valor econômico será a diferença entre o valor esperado a partir da exploração do serviço adaptado em autorização e o valor esperado em regime de concessão, calculados a partir da adaptação. Esse valor será revertido em compromissos de investimentos, priorizados conforme diretrizes do Poder Executivo. Para o cálculo do valor econômico serão considerados os bens reversíveis, se houver, os ativos essenciais e efetivamente empregados na prestação do serviço concedido.
Seguindo a Lei reformada, a Anatel poderá autorizar a conversão das concessões de telefonia fixa em autorizações, com a respectiva aplicação dos valores calculados a partir da transformação das outorgas em projetos de banda larga. O cálculo desses valores será de responsabilidade da Agência, num exaustivo processo de regulamentação, onde se insere a metodologia para chegar aos valores. Muitas outras questões precisarão ser definidas. Esse processo poderá demandar significativos tempo e força de trabalho do ente regulador, empresas reguladas e órgãos de controle.
A reforma legal acrescenta às atribuições da Anatel a competência para reavaliar periodicamente suas regulamentações, com base na competição e na evolução tecnológica. Permite que os detentores de autorizações de uso do espectro de frequências possam ter suas outorgas renovadas sucessivamente. Antes era limitada a apenas uma renovação. Permite ainda o mercado secundário de espectro, mediante negociação entre os detentores de outorga. A Agência poderá vetar a operação em caso de riscos à concorrência ou excesso aos limites de espectro.
Prevê a duração de 20 anos para a concessão, com possibilidade de renovação sucessiva e sem limites. Antes a renovação acontecia apenas uma vez. Nos contratos a serem extintos em 2025, essa renovação ocorreu em 2005. Como a adaptação da outorga de concessão para autorização não é obrigatória, a concessão poderá ser mantida e então renovada em certos casos. Porém, a renovação da concessão só acontecerá mediante prova do cumprimento de obrigações.
Para as licenças sob regime privado (autorização) a renovação será sucessiva e sem limite, desde que os outorgados tenham cumprido obrigações. A prorrogação da autorização será onerosa, como já previa a LGT, mas é acrescentado parágrafo que permite ao outorgado trocar o pagamento por obrigações determinadas pela Anatel.
Permite que as operadoras de satélite também possam ter o uso de posições orbitais renovadas. Antes o limite era de apenas uma renovação. Assim, a renovação passa a ser sucessiva e onerosa para o ocupante da posição. O valor da renovação poderá ser pago ou trocado por obrigações. A reforma também altera a Lei do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações ao dispor que os prestadores do serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem não contribuem para esse fundo.
Mutatis mutandis, após 22 anos de vigência da LGT e quase quatro anos de tramitação legislativa, a reforma legal foi sancionada pelo Presidente da República na Lei 13.879, de 3/10/2019; com as diretivas contidas no PLC 79/2016 (aprovado pelo Senado Federal, em 11/09/2019), oriundas do PL 3.453/2015 (aprovado pela Câmara dos Deputados, em 30/11/2016); permitindo a adaptação da modalidade de outorga de serviço de telecomunicações de concessão para autorização.
Assim, investimentos poderão ser destinados às modernas demandas da sociedade, principalmente no acesso à internet em banda larga, e não à perecível telefonia fixa, o objeto da concessão, que perde assinantes, receita e valor. Agora, cabem ao Poder Executivo regulamentar a Lei reformada, inclusive priorizando diretrizes, e à Anatel implementar, em sua esfera de atribuições, a reforma da política nacional de telecomunicações.
Mas cuidado com a regulamentação da política, pois, embora a tecnologia e a regulação possam construir pontes sobre as lacunas existentes entre os seres humanos; elas também podem aumentar a distância entre classes, raças e gêneros, e, bem mais quando no Brasil se requer a redução das desigualdades. À medida que as pessoas ganham importância econômica e poder político, o Estado pode investir em saúde, educação, segurança pública e bem-estar social. Portanto, atenção máxima no trato da coisa pública. Legem habemus.
*Juarez Quadros do Nascimento é Engenheiro Eletricista, titular da JMQN Advisors, ex-presidente da Anatel e ex-ministro de Estado das Comunicações.