Políticas públicas são urgentes para combater as incertezas
Sim, de fato, nunca antes no planeta Terra a sociedade parou como desta vez. Um grande desafio é saber como será o ambiente que se descortina. Encontraremos lições no passado e nas crises anteriores para pensar sobre o futuro? Reativar o planeta no cenário pós-pandemia será uma experiência para além do longo e pior período de recessão econômica vivido no mundo inteiro e conhecido como a Grande Depressão (1929/1939). As organizações (públicas ou privadas) estão a aprender que precisam ser mais resilientes (aguentar trancos e barrancos) para levar a difícil situação adiante. Falava-se muito em transformação digital, mas, em muitos lugares, pouco estava sendo feito de verdade.
A pandemia do Covid-19 traz incertezas sobre o futuro a exigir políticas públicas transversais em vários setores, incluindo nas telecomunicações, em função da grande mudança de percepção da sociedade. Os serviços de conexão à Internet agora se mostram mais essenciais que antes da pandemia, ainda que a desigualdade digital seja desafiadora para vencer esses barrancos. Então, é necessário que políticas públicas sejam transversais entre diferentes setores.
Destaque-se os leilões de espectro onde são necessárias diretrizes mais racionais de precificação. Tomemos, por exemplo, as redes 5G no Brasil. Essas redes se inserem no contexto tecnológico por poderem associar suporte à pandemia que, rapidamente, se transformou em uma crise socioeconômica mundial. Entre outros, esse argumento serviria de justificação ao governo brasileiro para uma política pública que não vise majoritariamente arrecadar recursos. Que prevaleça o bem-estar social e se descontextualize o viés arrecadatório dos leilões de frequências.
As tecnologias emergentes que garantem automatização e robotização, e assim habilitar a indústria 4.0, são incipientes na América Latina. No momento, apenas o Uruguai dispõe de uma rede 5G na região. Torna-se necessário que os países latino-americanos tenham uma agenda política digital, transversal e realista, ainda que a incerteza atual relativa ao cenário econômico mundial prejudique a análise de viabilidade dos investimentos para essas novas tecnologias. No momento, segundo fabricantes, 63 operadoras oferecem 5G comercialmente em 28 países, entre eles, ausente o Brasil, estão Alemanha, China, Estados Unidos, Reino Unido e outros.
Focando no Brasil, segundo levantamento feito em 2018 (Cetic.br), 70 milhões de pessoas têm acesso precário à internet e 42 milhões de pessoas nunca acessaram. Das pessoas das classes D/E que se conectam, 85% usam internet via celular e, ainda assim, com pacotes limitados e muitas sem poder pagar um plano de dados. Das pessoas mais pobres, 25 milhões delas só acessam internet pelo celular. No total de domicílios, 67% deles têm internet, sendo 47% por rede fixa. O acesso não chega a 56% das propriedades rurais e a 59% das pessoas de classes D/E. Como visto, a disparidade digital é um dos aspectos peculiares da disparidade socioeconômica brasileira.
Será que de 2018 para cá, essa disparidade digital melhorou? Ter consciência do papel das telecomunicações é fundamental para refletir sobre o muito que precisa ser feito, pois a conectividade ainda não está disponível a todos. Os barrancos digitais, tanto na infraestrutura quanto nos serviços, deveriam ser transpostos com a adoção de políticas públicas transversais. O momento de crise mostra que essas políticas deveriam ser prioritárias. A possibilidade de conectividade plena é algo que se tornou presente na vida das pessoas na última década e meia.
A crise também requer mudanças em muitos aspectos regulatórios. Algumas tendências tecnológicas já estavam sinalizadas antes da pandemia. Elas foram e continuarão sendo aceleradas, contribuindo para construir uma sociedade mais resiliente com significativos efeitos sobre como governar, trabalhar, aprender, comprar, vender, divertir, procurar serviços médicos e bancários. Mas, para tanto, não podem faltar licenças para instalar antenas de estações rádio base.
Com o distanciamento social para enfrentar a Covid-19, o mundo está a passar pela evolução de uma surpresa inevitável. O que aconteceu fez com que, em pares de horas, as pessoas mudassem a forma de viver e outras coisas mais. Não fosse a tecnologia disponível, grande parte da rotina diária não estaria funcionando.
Em uma situação normal, para alocar funcionários em home office as organizações levariam de dois a três anos para fazê-lo. Seriam meses para tomar decisões, estabelecer processos e treinamentos.
Mas a adoção do distanciamento social reduziu esse tempo para algo em torno de dois a três dias. Foi uma corrida por computadores, roteadores e conexões de redes. No Brasil, o tráfego na rede móvel subiu 30%, na fixa 70% e na internet o pico diário de tráfego passou de 7,5 Tbps (Terabits por segundo) para 11 Tbps. Operadoras, pontos de troca de tráfego (PTTs) e fabricantes agiram rapidamente para suportar esses acréscimos.
Para que nesse ambiente pessoas e máquinas possam trabalhar remotamente e operem em seu pleno potencial, políticas públicas transversais de telecomunicações, também, são de fundamental importância para toda a economia de desenvolvimento de negócios e de governos. Assim, teríamos soluções para telemedicina, ensino a distância, internet das coisas e para outras áreas importantes, nas quais, o beneficiado é melhor que seja o ser humano.
Navegando pelo mundo digital, buscando boas práticas de conectividade, é possível encontrar nos Estados Unidos, no site da FCC (Federal Communications Commission) o programa denominado Lifeline (https://www.fcc.gov/general/lifeline-program-low-income-consumers), que criado em 1985, faz parte do Fundo de Serviço Universal e tem por objeto as pessoas de baixa renda. O programa é administrado pela USAC (Universal Service Administrative Company). No acesso http://www.usac.org/li/getting-service/applying.aspx há informações sobre o programa que, em benefício de consumidores, paga certos valores às operadoras. Na sua origem, era aplicado apenas ao serviço telefônico mas, em 2016, a FCC modernizou o programa (https://www.fcc.gov/document/fcc-modernizes-lifeline-program-digital-age), ao incluir a banda larga no seu contexto. Anualmente, o Lifeline proporciona US$ 8 bilhões às pessoas de baixa renda.
No Brasil, um programa da natureza do Lifeline poderia ser pareado ao Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações). Instituído pela Lei 9.998/2000, o Fust tem por finalidade proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações. Lamentavelmente, não se moderniza a Lei, e dos R$ 22 bilhões arrecadados de 2001 a 2019, nada tem sido efetivamente utilizado na finalidade legal para a qual o fundo foi instituído. Eis uma oportunidade de política pública aplicável à faceta da disparidade digital no contexto de pós-pandemia.
(*) Juarez Quadros do Nascimento é Engenheiro Eletricista. Já foi ministro de Estado das Comunicações e presidente da Anatel.