A transição da TV analógica para digital no Brasil
Quando se iniciam os trabalhos de “limpeza” de frequências na faixa de 3,5 GHz; ocupada pelas antenas parabólicas via satélite (TVRO) para recepção de TV aberta e gratuita à cerca de 20 milhões de famílias, que deverão migrar da banda C para a banda Ku; assim como instalar filtros em estações profissionais de serviço fixo satelital (FSS) que operam na faixa acima de 3,7 GHz; de modo a permitir a chegada da tecnologia 5G no País, decido escrever sobre a transição da TV analógica para digital no Brasil.
Mediante Exposição de Motivos 1.247, de 6/09/2002, do Ministério das Comunicações, aprovada pelo Presidente da República em 11/09/2002 e publicada no DOU de 12/09/2002, foi instituída a Política para adoção de tecnologia digital no Serviço de Radiodifusão de Sons e Imagens no Brasil. A Política dispôs que um sistema de TV digital deveria permitir às classes econômicas “C”, “D” e “E” uma solução de baixo custo.
Com o Decreto 4.901/2003 foi instituído o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). Três anos depois, o Decreto 5.820/2006 dispôs sobre a implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), deu prazo para o Ministério das Comunicações estabelecer cronograma para a consignação dos canais de transmissão digital e que o período de transição seria de 10 anos.
Mais sete anos se passaram para o Poder Executivo, via o Decreto 8.061/2013, alterar o Decreto 5.820/2006 e determinar ao Ministério das Comunicações estabelecer que a transição teria início em 1º/01/2015 e encerramento até 31/12/2018. Em 2014, foi estabelecido o cronograma de transição da transmissão analógica dos serviços de Transmissão (TV) e Retransmissão (RTV), conforme o Anexo da Portaria MC 477/2014.
Após extenso trabalho entre Governo Federal, universidades e o setor de radiodifusão, com o Decreto 5.820/2006, foi definido o SBTVD-T com as diretrizes para o desligamento do sinal analógico. As primeiras transmissões da TV digital aconteceram em 2007, em São Paulo/SP, com simulcast (transmissão simultânea com sinal analógico e digital).
Visando a adoção da TV digital no País, radiofrequência possível de outorga para o Serviço Móvel Pessoal (SMP) com tecnologia 4ª Geração (4G) e, entre outras disposições, reger-se pelo Decreto 5.820/2006 (alterado pelo Decreto 8.061/2013), a Anatel realizou, em setembro de 2014, o leilão relativo ao Edital de Licitação nº 2/2014-SOR/SPR/CD-ANATEL, da faixa de 700 MHz, então ocupada pela TV analógica.
Atrasos e movimentação
Segundo a Anatel, em 2014, o Brasil contava com 542 estações de TV e 11.308 estações de RTV. Desse total, 400 radiodifusores foram elegíveis ao ressarcimento de custos de equipamentos. Os demais radiodifusores, por sua conta e risco, tiveram que assumir investimentos. Nesse contexto, alguns radiodifusores enfrentaram dificuldades econômicas para as aquisições. Outros enfrentaram filas de espera impostas pelos fabricantes de equipamentos.
Em conformidade com o Edital de Licitação, as empresas vencedoras do leilão ressarciram os custos da migração da TV analógica para digital (R$ 3,6 bilhões). Prevista para ser o braço operacional do processo, em 2015, uma entidade administradora foi constituída pelas empresas vencedoras do leilão (Claro, TIM, Vivo e Algar).
O Edital definiu também um modelo de governança do processo por meio do Grupo de Implementação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (Gired), com atribuições de deliberar e fiscalizar a transição para o sinal digital. O Gired foi composto por representantes da Anatel (que o preside), Ministério das Comunicações, empresas vencedoras do Leilão e empresas de radiodifusão.
Com a TV aberta e gratuita presente em 98% dos lares brasileiros, havia grande atenção sobre a capacidade econômica da população adquirir televisor digital ou conversor analógico-digital. Diante desse cenário, a questão era como massificar a informação de forma que na data do desligamento do sinal analógico, pelo menos, 93% dos domicílios estivessem aptos à recepção do sinal de TV digital.
No decorrer de 2016 aconteceram os desligamentos em Rio Verde/GO e Brasília/DF, a abranger quatro milhões de pessoas, porém com atrasos ocasionados tanto pelos radiodifusores como pelos telespectadores. Em 2017 os desligamentos chegaram às maiores regiões metropolitanas do país, a abranger 68 milhões de pessoas. E em 2018 os desligamentos voltaram-se para as regiões Sul, Centro-Oeste e Norte do País, assim como para o interior do País, a abranger 56 milhões de pessoas.
Os números do desligamento da TV analógica envolveram: 128 milhões de pessoas; 44 milhões de domicílios; 1.379 municípios; e 12,4 milhões de kits distribuídos gratuitamente às famílias de baixa renda registradas nos Programas Sociais do Governo Federal. De modo a vencer desafios, o processo contou com parcerias a envolver governos municipais, varejo, lideranças comunitárias, e organizações da Sociedade Civil.
Chegar à população “C”, “D” e “E” não foi fácil. Mesmo com o apelo do “Vem aqui, você tem o direito de receber o kit de forma gratuita!”, as pessoas desconfiavam. Muitas vezes até o recebiam, mas não o instalavam; o que dificultava alcançar os 93% na pesquisa de cobertura do sinal digital.
Importa comentar que a implementação-piloto em Rio Verde/GO; primeiro dos 1.379 municípios do processo, cuja previsão ministerial para desligamento era 29/11/2015 e só ocorreu em 01/03/2016; mostrou que a razão do Programa era maior que realizar a conversão do sinal de TV e liberar a faixa 700 MHz para o SMP.
Em Rio Verde, as famílias se negavam a usar o Kit, pois apenas uma das emissoras de TV local fazia a transmissão digital e uma vez instalado o conversor o telespectador ficava sem assistir os outros canais. Assim, fatos apresentaram-se: (i) nem todas as emissoras contavam com geração digital devidos problemas econômicos ou não serem atendidas em tempo pelos fabricantes e (ii) quando realizadas as verificações de cobertura, os 93% dos domicílios não estavam aptos à recepção do sinal de TV digital.
No desligamento do agrupamento de São Paulo/SP (39 municípios); inclusa a capital São Paulo, com 12 milhões de habitantes; 7,2 milhões de domicílios (capital e entorno); e 1,9 milhão de kits a serem entregues, cujo desligamento era previsto para 15/05/2016 e só ocorreu em 29/03/2017; na 1ª pesquisa realizada (13 e 25/01/2017), dois meses antes do desligamento, do 1,9 milhão de beneficiários apenas 6.000 haviam recebido o kit e o percentual de digitalização foi de 85%.
Na segunda pesquisa, às vésperas do desligamento, a aferição foi de 90%, o que atendeu ao percentual mínimo ao adicionar a margem de erro de três pontos percentuais. Duas outras pesquisas foram realizadas, uma no momento imediato ao desligamento e outra 60 dias após, que indicaram respectivamente 95% e 99%. Isso validou o uso da curva de tendência a confirmar uma “corrida” pelos kits após o encerramento do sinal analógico.
Engajado no objetivo de que os demais agrupamentos obtivessem bons resultados e percebendo a importância da presença da autoridade da Anatel na mídia local, passaram a acontecer visitas 30 dias antes aos agrupamentos a serem desligados. As visitas contavam com o presidente da Anatel, representantes das empresas vencedoras do leilão e radiodifusores. As entrevistas à mídia deram efetividade à retirada de kits.
No agrupamento do Rio de Janeiro/RJ (19 municípios); com previsão de desligamento para 27/11/2016 e que só ocorreu em 25/10/2017; a meta era entregar um milhão de kits. A solução adotada inicialmente foram os Correios, que não foi suficiente para a entrega de kits no tempo desejado. Eram necessários lugares de fácil acesso para a retirada dos kits, além do treinamento de como os instalar. A solução foram as escolas de samba que chegaram a 5.000 kits entregues por dia em cada uma delas.
No agrupamento de Recife/PE (14 municípios); com previsão de desligamento para 30/07/2017 e que ocorreu em 26/07/2017, a partir dos dados iniciais, foi chegada à conclusão de que um dos melhores meios de acesso para a população eram as comunidades religiosas, pois as igrejas estavam mais bem localizadas nas comunidades.
No agrupamento de Rio Branco, no Acre (três municípios), cuja previsão para o desligamento era 25/11/2018 e ocorreu em 14/08/2018, tendo como parceiros líderes comunitários a percorrer “ramais” (vias de difícil acesso) às “colônias” (sítios isolados para moradia e produção agrícola familiar), vários acrianos foram convencidos a se habilitar para receber os kits para recepção do sinal de TV digital.
Os atrasos, em 2015, 2016 e 2017 impediram ganho de competitividade às operadoras de SMP na prestação dos serviços com 4G; aos radiodifusores oferecer o sinal de TV com melhor qualidade de som e imagem, desligar os equipamentos analógicos (encerrando a fase simulcast) e reduzir despesas (energia, sobressalentes e pessoal); e aos consumidores a melhor qualidade de som e imagem na TV, assim como o acesso nos celulares à internet com mais capacidade de transmissão.
No ano de 2018 houve o acatamento pela autoridade ministerial da proposta do Gired de antecipar as datas de desligamento dos agrupamentos relativos a sete capitais para 14/08/2018, culminando na edição da Portaria MCTIC 1.019/2018. Entre as motivações estavam a antecipação dos benefícios advindos da TV digital e a possibilidade de igualar todas as capitais às mesmas condições de inovação proporcionadas pela migração.
Entretanto, atualmente, ainda falta a digitalização em muitos municípios aonde as empresas de TV não estão presentes, mas permitem a retransmissão de seus sinais, mediante outorga ministerial às Prefeituras. Contudo, essas Prefeituras não têm como trocar os equipamentos analógicos de suas propriedades.
A solução adotada pelo Ministério das Comunicações é usar parte da sobra de recursos remanescentes do leilão de 4G, via o Programa Digitaliza Brasil, que despertou o interesse em 1.000 cidades para a digitalização de TV. A previsão é que R$ 844 milhões sejam investidos com as Prefeituras, de forma que no decorrer de 2022 e 2023 sejam digitalizados canais analógicos de TV em mais de 1.600 cidades do País, a abranger 23 milhões de habitantes.
(*) O autor é Engenheiro Eletricista. Foi ministro de Estado das Comunicações, presidente da Anatel e do Gired.