Opinião

Plataformas digitais, os serviços ao cidadão brasileiro e o Governo

Uma iniciativa consequente disposta em Projeto de Lei (PL) apresentado à mesa diretora da Câmara dos Deputados, em 10/11/2022; com justificação consistente, circunstanciada e avançada; propõe que a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) seja alterada e assim passe a regular a operação de plataformas digitais no Brasil. O PL 2.768/2022, de autoria do deputado federal João Maia (PL/RN) aparentemente é inspirado no Ato de Mercados Digitais, aprovado no corrente ano (2022) na Europa.

O PL define como plataformas digitais: serviços de intermediação online, ferramentas de busca online, redes sociais online, plataformas de compartilhamento de vídeo, serviços de comunicações interpessoais, sistemas operacionais, serviços de computação em nuvem e serviços de publicidade online ofertados por operador de plataformas digitais. O texto prevê a criação do fundo de fiscalização das plataformas digitais, constituído, entre outras fontes, por uma taxa que seria cobrada das plataformas digitais atuantes no Brasil.

A Anatel passaria a regulamentar e fiscalizar as Big Techs, também conhecidas por Over the Top (OTT), tais como WhatsApp, Facebook, Twitter, Signal, Telegram e outras. Para conferir à Anatel esse poder, o PL altera a LGT, acrescentando entre as atribuições da Agência: expedir normas quanto à operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro, fiscalizar e aplicar sanções, deliberar na esfera administrativa quanto à interpretação da legislação aplicável às plataformas digitais que oferecem serviços ao público, bem como sobre os casos omissos, compor administrativamente conflitos de interesse envolvendo operadores das plataformas digitais ou usuários profissionais e reprimir infrações dos direitos dos usuários.

Nos dias atuais, as redes de telecomunicações, além da voz, envolvem texto, vídeo, entretenimento, localização, propaganda (telemarketing), disputas eleitorais etc. Tudo isso a se misturar cada vez mais. Nesse contexto, as operadoras de telecomunicações não têm como suportar o que experimenta o usuário com a popularização das novas formas de informação e comunicação, ante a integração das redes, com mobilidade, portabilidade, interatividade e ultra velocidade de transmissão de dados.

Os telefones inteligentes (smartphones), se comparados aos antigos terminais mais simples, permitem dezenas de vezes mais tráfego de dados. E, quando conectados com outros devices (computadores, roteadores etc.), permitem centenas de vezes mais. Tudo isso ocasiona o inevitável crescimento da transmissão de dados nas redes. O que, por sua vez, requer investimentos significativos para poder aumentar a capacidade das redes, adequando-as para o atendimento da fabulosa gama de novos serviços via plataformas digitais.


Nos últimos vinte e cinco anos, com a desestatização do setor brasileiro de telecomunicações, segundo a Conexis, as empresas operadoras investiram no Brasil cerca de R$ 1 trilhão (em valores correntes), o que resulta uma média de R$ 40 bilhões por ano. Telecomunicações é o terceiro setor que mais investe no país. Com esses investimentos está construída e mantida uma das maiores redes de telecomunicações do mundo. São 338 milhões de acessos em todo o país, entre telefonia e banda larga fixa e móvel, além de tv por assinatura.

A popularização dos serviços ocorreu mesmo com a elevada carga tributária (em torno de 47%), que representa R$ 60 bilhões que empresas e consumidores de telecomunicações pagam anualmente, mas que infelizmente não são aplicados. Como por exemplo, o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), criado em 2000, com arrecadação acumulada de R$ 55 bilhões (em valores correntes), cuja aplicação é desvirtuada da sua finalidade legal. O PL em destaque cria um fundo, quiçá não seja mais um fundo a ser desviado para compor superavit primário.

Ao mesmo tempo, as empresas OTT conquistam espaço pelo mundo. O que afeta as operadoras de telecomunicações, que, obrigadas a altos investimentos, questionam a condição de serem simplesmente uma rede de dutos para o tráfego de dados. Quanto as empresas OTT investiram em conteúdo, redes e licenças? Quanto de tributos pagaram ao fisco brasileiro? Essas empresas precisam participar dos investimentos em redes (em contrapartida ao tráfego demandado por elas); pagar pelas licenças e conteúdo para exploração dos serviços, assim como os tributos que lhes forem atribuídos.

Portanto, são consequentes e necessárias reflexões e ações sobre as mudanças por que passa o admirável mundo novo do ecossistema digital, no que se refere às grandes transformações nos setores de informação e comunicação, via plataformas digitais. Tais transformações desafiam reguladores, fabricantes, provedores de conteúdo e operadoras de telecomunicações. Dessa forma, mundialmente, a expansão contínua, intensa e rápida (uma verdadeira metamorfose digital) muda a sociedade, o mercado, os negócios e as relações entre os governos e os cidadãos.

Ao fazer um benchmarking (exercício estratégico para estabelecer linhas de base a trazer dados valiosos que incentivam a discussão sobre um determinado tema), sem esgotar a questão, vejamos o que há de concreto em algumas democracias na Europa, Estados Unidos (EUA), Austrália, Coreia do Sul e Índia. A Europa lidera essa discussão, ao aprovar medidas que regulamentam a atuação dessas plataformas e limitar seu poder. Tanto que na Comissão Europeia, o Digital Markets Act, direcionado aos chamados controladores de acesso (gatekeepers) no mundo digital, foi aprovado em 2022.

Nos EUA, Relatório do Congresso Americano-RCA, de 2020, (Investigation of Competition in Digital Markets), organizado pela Federal Trade Commission, descreve o que seriam as condutas anticompetitivas. Em função desse Relatório, foi proposto em 2022 o American Innovation and Choice Online Act (H.R.3816 – 117th Congress 2021/2022), que elimina o selfpreferencing, restringe a política de obtenção de dados de terceiros e outras restrições às condutas das plataformas digitais. Desde setembro de 2022, o projeto está no Congresso Americano.

Na Austrália e Coreia do Sul, para tratar de mudanças na regulação do emprego de plataformas digitais com impactos diretos no setor de telecomunicações, o tema tem sido amplamente discutido e, em consequência, já há regulação quanto à remuneração de redes locais pelos provedores de conteúdo. Na Índia, as empresas OTT teriam que pagar tributos e licenciamento, contribuir para o fundo de universalização, prevenir fraudes cibernéticas e fortalecer a segurança nacional, conforme manifestação pública da associação de operadores de celular da Índia, que enviou, em 10/11/2022, contribuição a um o projeto de lei, que visa reformar as leis do setor e ampliar a definição de serviços para incluir empresas OTT. Ao final do processo provavelmente haverá um projeto de lei final que será apresentado ao Parlamento da Índia.

Assim, o mundo degusta uma mudança da forma, natureza e estrutura de se informar e se comunicar. Essa mudança requer atenção de empresários, gestores públicos e legisladores em geral, o que infelizmente, nos últimos anos, não vinha ocorrendo de forma prática e estratégica no Brasil. O governo brasileiro terá que ir muito além das escassas decisões tomadas até agora ao abordar o tema. Então, aguardemos o que acontecerá com o PL 2.768/2022.

* O autor é Engenheiro Eletricista. Foi ministro de Estado das Comunicações e presidente da Anatel.

Botão Voltar ao topo