Opinião

Riscos à assimetria regulatória e ao conceito PPP

Por Fabio Vianna Coelho (*)

Sete entidades que representam provedores regionais valeram-se de um parecer do jurista Floriano de Azevedo Marques Neto, professor titular da Faculdade de Direito da USP e ministro do TSE, para defender, junto à Anatel, a manutenção do conceito Prestadora de Pequeno Porte (PPP) em seus atuais moldes e a assimetria regulatória vigente, que garante às empresas que recebem essa classificação regras menos rigorosas que as destinadas às grandes operadoras. A ação inédita que reuniu Abrint, TelComp, Abramulti, Apronet, Associação NEO, InternetSul e Redetelesul resulta do temor de que o atual modelo seja alterado na revisão do Plano Geral de Metas de Competição (PGMC) a partir da pressão das teles. Esse risco de fato existe?

Sim. Parte significativa das discussões sobre o tema deu-se no âmbito da criação do novo Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Telecomunicações (RGC), trazido na Resolução 765. Foi por conta de uma série de recursos impetrados pelas teles que se adiou em doze meses sua entrada em vigor – ocorreria no último 2 de setembro. Dentre as justificativas apresentadas pela Anatel para a postergação, constava “a necessidade de mitigar riscos aos consumidores”, possibilidade levada à consulta pública sobre a revisão do PGMC por Claro, Vivo e TIM, que se posicionaram, dentre outros, contra as assimetrias trazidas pelos artigos 90 e 91 da norma.

Também foi a Claro que encomendou um amplo levantamento junto à Teleco, segundo o qual PPPs detêm market share superior a 50% em 3.394 cidades, sendo que, em 1.042 delas, passava dos 80%. Esses e outros dados trazidos pela consultoria deram base a um estudo entregue pela operadora em abril, também na audiência pública sobre o PGMC, à Anatel. Nele, sugeria à agência reduzir sua intervenção e controle em cidades com elevado nível de competição, incorporar ao conceito “PPP” indicadores como receitas e capacidade de investimento e a destinação da assimetria regulatória somente a provedores com até 5 mil acessos e faturamento de até R$ 6 milhões.

O trabalho da consultoria contemplou praticamente o país inteiro: 5.047 municípios – segundo o IBGE, são, ao todo, 5.568. Supõe-se, assim, que o investimento da operadora foi significativo, assim como é a importância que ela dá ao tema, principalmente com relação a determinados alvos. Seu estudo apontava que nove operadoras – que dispõem de características como participação de fundos de investimento internacionais em seu capital e ações negociadas em bolsa – dominavam o mercado em cerca de 700 cidades, com share superior a 90% em algumas delas. A essas, não caberiam os benefícios regulatórios concedidos aos PPPs, assim como a própria classificação.


Ainda que, aparentemente, não fosse essa a intenção da Claro, seus ataques atingiram em cheio ISPs de menor porte, que pouco lhe interessam. Exemplo disso foi a declaração de seu head de assuntos regulatórios, Daphne Nunes, sobre o surgimento dos “usuários de segunda classe, que não têm direitos assegurados em regulamento.” 

De modo geral, a Resolução 765 flexibiliza as obrigações de todas as empresas, inclusive das grandes, que, dentre outros, não serão mais obrigadas a disponibilizar atendimento presencial – assim como os demais provedores. Caso optem por fazê-lo, não precisarão mais valer-se de estabelecimentos dimensionados para que a espera dos consumidores não ultrapasse 30 minutos, como determina o artigo 35 da Resolução 632. Bastará, quando o novo RGC entrar em vigor – caso mantenha a atual redação –, dispor de profissional apto para atender a quaisquer demandas relacionadas aos serviços da empresa (artigo 90). De fato, para PPPs que possuírem de lojas físicas, não há tal exigência.

Mas as diferenças entre as regras destinadas a PPPs e grandes operadoras não diferem tanto assim. Alvos de objeções de Claro, Vivo, TIM e Oi, os artigos 90 e 91 são os que trazem a assimetria ao regulamento. O último prevê que PPPs devem disponibilizar atendimento telefônico por oito horas em dias úteis, enquanto que as grandes operadoras, 24 horas todos os dias. É o mesmo que a Resolução 632 determina.

Já o artigo 90 relaciona os trechos da norma que devem ser observados pelos PPPs – as teles devem cumpri-lo na íntegra. Faz com que essas empresas não precisem fornecer histórico de demandas de clientes – embora tenham de informar o número de protocolo de cada atendimento –, acesso a atendimento digital por até seis meses após rescisão contratual, informar que a gravação de chamadas pode ser solicitada pelo usuário, dispor de ouvidoria – exigência que também não existe na Resolução 632 –, informar que haverá retorno imediato quando ligações caírem, dentre outras que, respeitadas as exigências cabíveis a empresas Detentoras de Poder de Mercado Significativo e as demais, soam bastante razoáveis.

Por outro lado, têm de realizar reparos em até dez dias corridos quando estes não puderem ser feitos de imediato – tal qual as teles. Tais condições não são suficientes para afirmar que os clientes de PPPs serão relegados a uma segunda categoria.

Isso, no entanto, muda de figura no parágrafo 5º do artigo 90, que estabelece que ISPs com até 5 mil acessos – que, conforme a Claro, deveriam ser os únicos a serem beneficiados com as assimetrias e classificados como PPPs – devem observar apenas o Capítulo I do Título II e Capítulo I do Título III. Desta forma, exime esses provedores do cumprimento, por exemplo, de prazos para a realização de consertos e restabelecimento de serviços quando houver paralisação. Também não há nada quanto aos períodos em que seus canais de atendimento devem funcionar. Ao eliminar uma série de obrigações cabíveis a essas empresas, o novo RGC, de fato, possibilita o surgimento de “usuários de segunda classe”.

Não haveria porque a líder do segmento, com mais de 10 milhões de clientes na banda larga fixa, atacar essas empresas. Mas, para dar força às suas críticas à assimetria concedida a grandes ISPs – poucos que registram de 300 mil a 1,5 milhão de acessos –, acabou por atingir o grupo mais beneficiado – talvez até excessivamente – pela diferenciação das regras.

A Anatel dispõe de duas definições sobre o que é uma PPP. A Resolução 694/2018 estabelece que são operadoras que detêm menos de 5% dos mercados em que atuam. O Ato 653, de 2019, no entanto, considera que PPPs são as que não pertencem aos grupos Telefônica (Vivo), Telecom Americas (Claro), Telecom Itália, Oi e Sky/AT&T.

Há óbvios interesses comerciais e mercadológicos por trás dos esforços das teles em alterar o conceito “PPP” e a assimetria regulatória. Vivo e Claro têm liderado as adições de acessos na banda larga fixa a partir da modernização de suas redes. A estratégia pode elevar continuamente suas receitas, mas, em termos de ganho de market share, tem efeitos limitados pela virtual universalização que o serviço registra nos grandes centros, as praças onde atuam. Resta-lhes partir para aquisições.

A possibilidade de que as teles ingressassem na onda de M&As do segmento é aventada desde o anúncio da fusão Vero/Americanet, em julho de 2023. As operadoras, além de nunca terem negado tal possibilidade, sempre disseram estar atentas a oportunidades. Tanto estavam que, após a circulação de rumores, Vivo e Desktop acabaram por confirmar, no final de maio, que tratavam sobre um possível M&A. Ainda que as negociações tenham se encerrado sem a concretização do negócio, confirmam o interesse de grandes operadoras por PPPs.

Isso justifica a preocupação com a assimetria regulatória. Caso uma tele comece a atuar em nova área a partir da aquisição de um ISP, acabaria por disputar mercado com empresas que, classificadas como PPPs, estariam sujeitas a regras mais brandas que ela teria de cumprir.

Grandes operadoras e provedores regionais se esforçam em uma queda de braço que está longe de se limitar ao mercado de banda larga fixa. A princípio, o embate deveria ficar restrito a teles e ISPs que possuem mais de 300 mil clientes. Mas acabou por atingir a todo o mercado, inclusive os que dispõem de menos de 5 mil acessos que, conforme estudo do conselheiro Vicente Aquino apresentado durante a elaboração do novo RGC, representam 93% dos provedores ativos no país.

Aparentemente, a Anatel mantém-se convicta de que a assimetria regulatória é essencial à competição. Sabe, mais que qualquer player ou jornalista que acompanha o segmento, que foi ela que possibilitou o salto de 32,9 milhões de conexões fixas no final de 2019 para os cerca de 50 milhões atuais. Porém, ao recorrer a Marques Neto, um jurista com notório conhecimento sobre os aspectos regulatórios do setor de telecomunicações, entidades bastante habituadas ao trânsito pelos corredores e gabinetes da agência indicam seu grau de preocupação. A revisão do termo PPP e dos parâmetros que definirão as empresas beneficiadas pela assimetria regulatória, ao menos nos termos atuais, deve mesmo estar em risco.

(*) Fabio Vianna Coelho é sócio da VianaTel, consultoria especializada na regularização de ISPs, e do RadiusNet, software de gestão para provedores.

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