Covid-19: Educação a distância e o desafio de funcionar aonde o aluno está
A crise sanitária transformou o ambiente de ensino, público e privado, nos últimos quatro meses, apresentando inúmeros desafios para estudantes e toda a comunidade de docentes. Em entrevista exclusiva ao Convergência Digital, Maria Isabel Peixoto Guimarães e Rafael Cuba, professores do IAG – Escola de Negócios da PUC-Rio, analisam o cenário atual de EAD e apontam alguns caminhos para que instituições de ensino repensem seus modelos de negócios e possam equilibrar a adoção de novas de tecnologias de ensino com a realidade de suas respectivas estruturas financeiras. Maria Isabel e Cuba também observam que o uso de plataformas virtuais, do ponto de vista de infraestrutura, também deve ser repensado para que o estudante tenha facilidade de acesso em ambiente móvel.
Convergência Digital – Estudos da Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES) apontam que até 2023 o número de novas matrículas para cursos de EAD tende a superar os de cursos presenciais. Esse cenário pode ser acelerado em função da pandemia, momento em que as instituições de ensino, sobretudo, no segmento Ensino Superior estão tornando o EAD uma rotina. Mas a crise também tem apontado que muitas instituições ainda precisam galgar muitos passos para ter uma infraestrutura de tecnologia que atenda os objetivos acadêmicos. Qual a percepção dos senhores sobre a infraestrutura disponível hoje em universidades e centro universitários, públicos e privados, para o ensino de EAD?
Rafael Cuba – O Brasil tem dimensões continentais e isso aumenta o desafio, também, quando o assunto é Educação a Distância. Quando pensamos no universo das instituições de ensino superior (IES), cada região, instituição e mercado apresentarão especificidades que favorecem ou dificultam a oferta de Educação a Distância com qualidade.Mas, de uma forma geral, para a oferta de cursos nessa modalidade, podemos considerar alguns aspectos que são necessários para a infraestrutura dessas instituições, entre eles:
• Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) adequado
• Repositório para disponibilização, organização e gestão dos conteúdos
• Software para processos administrativos digitais (matrícula, trancamento, atendimento, informações do curso, ementas, suporte para plataforma, entre outros).
• Software para estrutura de produção de Recursos Educacionais: elaboração de conteúdo, design, diagramação e produção – destacando a importância do uso de diferentes formatos: vídeos, e-books, podcasts e outros.
Nesse sentido, as IES, públicas ou privadas, em geral, possuem acesso a essa infraestrutura. O desafio de acesso a esses recursos por parte das instituições públicas pode ser mitigado, a partir do uso de software livres e gratuitos, como, também, por meio de parcerias com programas e instituições como a ABED (Associação Brasileira de Educação a Distância), Universidade Aberta do Brasil, e os centros de Educação a Distância de suas próprias instituições.
Convergência Digital – Quais os maiores desafios do ponto de vista de infraestrutura (hardware e software) para que o aluno consiga ter uma melhor experiência de aprendizado?
Rafael Cuba – Em um contexto de revolução 4.0, o avanço tecnológico apresenta novas possibilidades para o mundo do trabalho e, consequentemente, para a Educação. Desse modo, o desafio deixa de ser a existência de tecnologias para a Educação a Distância e passa para o uso que daremos a elas. Avançamos muito do ponto de vista tecnológico, mas precisamos avançar do ponto de vista da prática pedagógica, ou teremos uma educação que utiliza um carro de Fórmula 1 para andar em uma pista de Kart.
É fundamental pensarmos em acesso livre e irrestrito aos recursos educacionais disponibilizados durante os cursos. Isso porque acessibilidade e inclusão são duas palavras-chave quando o assunto é Educação a Distância no contexto atual. Repare que, atualmente, não há conteúdo que um estudante não tenha acesso. Por isso, o valor que a universidade entrega em um curso on-line é a forma como o professor sai do lugar de detentor de um conhecimento e passa a ser um mediador, alguém que faz uma curadoria qualificada sobre o que deve ser visto sobre determinado assunto. Ou seja, o acesso aos conteúdos, o uso das discussões para co-criar e contextualizar o conhecimento para o dia a dia do estudante pode ser o grande segredo.
Do ponto de vista da infraestrutura, é preciso, também, pensar em plataformas e Ambientes Virtuais de Aprendizagem que sejam responsivos, ou seja, tenham as telas e a sua usabilidade adaptadas ao mobile. É lá que os nossos estudantes estão, e nossos professores também. Para garantir que o estudante tenha uma experiência de aprendizagem bem sucedida, o professor precisa estar seguro e confortável com as tecnologias utilizadas. Nesse ponto, confiança e conhecimento tecnológico se tornam segurança emocional e é preciso pensar ainda na etapa de planejamento, na perspectiva do professor como um profissional que é desafiado pelas novas tecnologias e ferramentas. No fim das contas, são eles que conduzirão a experiência de aprendizagem (ainda que seja fundamental considerar o protagonismo do estudante nesse processo). Em outras palavras, responsividade, adaptabilidade, acessibilidade e praticidade são os pontos de atenção no planejamento da experiência do aluno e o uso adequado da infraestrutura da instituição.
Convergência Digital – Que experiências internacionais ou nacionais vocês podem citar como exemplos bem-sucedidos?
Maria Isabel Guimarães – O exemplo do IAG PUC-Rio é interessante. O curso de Graduação em Administração passou por uma grande reformulação e começou 2020 com um novo currículo para os ingressantes neste período. Após um longo trabalho pedagógico, realizado pelo LIP – Laboratório de Inovação Pedagógica (do próprio IAG), desenhou-se um currículo no qual constam algumas disciplinas em EaD, apesar de o curso de Graduação ser um curso presencial. Para o desenvolvimento dessas disciplinas, vinha sendo realizado um trabalho importante de preparação dos professores para a nova modalidade, para que premissas pedagógicas importantes fossem embarcadas na solução.
Eis que, de repente, nos vimos diante do enorme desafio de não parar a educação na pandemia. Devido ao trabalho realizado nos últimos 18 meses, a respostas do IAG foi imediata e, na primeira semana de isolamento social, os professores já interagiam com seus alunos e já eram orientados para a realização de melhores práticas em EaD. Na verdade, eram orientados para novas práticas, dada a especificidade da situação.
Além do curso de Graduação, o IAG vem inserindo experiências de aprendizagem em EaD nos cursos de pós-graduação – formação, aperfeiçoamento e MBAs –, e em projetos de Educação Corporativa, como aconteceu na Academia de Liderança da BR Distribuidora. Podemos citar, como exemplo internacional, as plataformas que abrigam cursos a distância de inúmeras universidades, de diferentes partes do mundo, incluindo as consideradas as melhores do mundo, como, por exemplo, Harvard, MIT, Berckley, Stanford e Sorbonne. Coursera e edX são dois exemplos dessas plataformas. Oferecem cursos gratuitos e pagos, com bons catálogos e temas diversificados. Pelo Coursera, por exemplo, já passaram 45 milhões de pessoas, o que indica o potencial de democratização da educação, com qualidade, proporcionado pela EaD.
Convergência Digital – O investimento em infraestrutura de TI demanda tempo e dinheiro, muitas vezes, acima do disponível na área de ensino. Como as instituições de ensino podem equilibrar essa equação para oferecer uma experiência completa em EAD?
Rafael Cuba – É importante que as instituições revisitem seus modelos de negócios para pensarem em como irão equilibrar a necessidade por novas tecnologias de ensino com as suas estruturas financeiras e estratégias de preço.
Um possível caminho é buscar software livres e gratuitos, como também a parceria com outras instituições de ensino para negociar os valores cobrados nas licenças dos softwares pagos. Outra ação possível de parceria estratégica é buscar empresas de tecnologia que tenham interesse em oferecer soluções para as universidades em troca de acesso aos cursos produzidos ou algum outro benefício a ser negociado entre as instituições.
As parcerias também podem acontecer com instituições que tenham disponibilizados repositórios de Recursos Educacionais Abertos, como também Open University e MOOC (Massive Open Online courses) que podem ser adaptados ao contexto da instituição que irá utilizá-los. Para isso, vale pesquisar e conhecer mais as licenças Creatives Commom, que permitem o uso e edição de conteúdo sem que as instituições precisem reinventar a roda. Mais uma vez, a curadoria entra como possibilidade de valor para a instituição e para os alunos.
Convergência Digital – Quais são os grandes aliados em infraestrutura de TI das instituições de ensino, sobretudo, no setor privado, para entregar um conteúdo acadêmico que faça sentido para docentes e alunos?
Rafael Cuba – Plataformas que permitem a criação e compartilhamento de conteúdo, tanto por estudantes, como também por docentes. Além disso, é fundamental pensar nas plataformas de videoconferência, que aumentam o contato entre a turma e diminui a percepção de que as aulas on-line são solitárias e produzidas sem customização. O Fórum Econômico Mundial destacou, em 2019, a forma como a telepresença pode transformar a colaboração virtual entre as pessoas. As instituições de ensino podem usar essas tecnologias, e a colaboração, para não apenas oferecer produtos pedagógicos, mas, também, construir essas soluções de aprendizagem com as turmas, como, por exemplo, utilizar conteúdos produzidos por estudantes em turmas futuras.
Convergência Digital – Os alunos, de um modo geral, já fazem parte de uma geração mais acostumada com a tecnologia, é quase um movimento natural, mas essa prática nem sempre se repete com o corpo docente. Como a tecnologia pode encantar o professor?
Rafael Cuba – É importante que as instituições cuidem de seus professores desde a etapa do planejamento. As soluções pedagógicas e as ferramentas tecnológicas precisam ser adotadas considerando a curva de aprendizagem dos professores, que precisam estar confortáveis com as escolhas feitas pelas instituições. Desse modo, é preciso treinar, criar espaços para troca entre professores e estabelecer uma relação de confiança.
O encantamento do professor virá quando ele perceber as possibilidades de conexão com a turma, que é possível inovar pedagogicamente e que as recompensas desse processo – psicológicas e emocionais – são significativas.
Convergência Digital – Recursos como o uso de nuvem pública têm ajudado muitas empresas a oferecer serviços no mundo digital em grande escala. As instituições de ensino também podem se beneficiar do uso de nuvem? Como?
Rafael Cuba – Podem, claro. Tanto do ponto de vista do armazenamento dos conteúdos e das ações de aprendizagem construídas, como, também, pela facilidade de acesso e disponibilização de conteúdo aos estudantes, professores e parceiros.
Outra importante utilidade do uso da nuvem vem com as ferramentas de cocriação, que podem funcionar como wikis, mas também como lugares de construção de conteúdo, compartilhamento de documentos e, do ponto de vista da gestão, no gerenciamento do curso (por exemplo, pastas compartilhadas, presença on-line, repositório de documentos, entre outros).
Convergência Digital – As instituições de ensino lidam com dados muito sensíveis, no Brasil e estamos perto de ter a Lei Geral de Proteção de Dados, onde há a preocupação com o manejo de dados sensíveis já é realidade em muitas organizações. Como a tecnologia pode ajudar as instituições de ensino a avançar nos recursos de EAD e preservar os dados sensíveis armazenados em suas bases?
Rafael Cuba – Com a LGPD é importante que algumas práticas pedagógicas tomem cuidados, por exemplo: a publicação de notas e presença dos alunos, acesso e armazenamento de documentos e dados, gravações de videoaulas, compartilhamento de avaliação, entre outros. O caminho é repensar as práticas pedagógicas para o contexto virtual, ao invés de replicar práticas do off-line, com as novas tecnologias. É importante ter claro que novas tecnologias exigirão das instituições de ensino novas práticas.