Trauma com fake news e atos golpistas envenena debate sobre Marco Civil no STF
O trauma nacional por conta do 8 de janeiro projeta uma sombra gigante sobre o debate da regulação das plataformas na internet. E isso se viu nesta terça, 28/3, no primeiro dia da audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal para discutir um tema correlato, mas que em princípio seria diferente: a constitucionalidade do Marco Civil da Internet, mais especificamente o artigo 19, que exime de responsabilidade civil as redes sociais por conteúdo de terceiros.
Que o tema ganhou destaque não há dúvida. A audiência contou com cinco ministros do STF, além do ministro da Justiça, Flávio Dino, dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e do Advogado Geral da União, Jorge Messias. E todos, ao abrirem as discussões, trataram do uso das redes para disseminação de mentiras e promoção de atos antidemocráticos. Mas muito pouco sobre porque o artigo 19 do MCI ganhou a redação que tem no Congresso Nacional.
Pelo governo, o ministro Flávio Dino destacou que “não há tema mais estruturante do perfil da democracia no século 21” que a responsabilidade das plataformas na internet. E reforçou três premissas que fazem parte das discussões no Executivo para a construção de uma proposta de legislação: que “a liberdade de expressão não está em risco quando se regula”, voltada a “fixar fronteiras entre uso e abuso”; que “algoritmo é humano e, portanto, humanamente programado e reprogramável”; e que “não tratamos apenas de modelo de negócios, mas do controle das subjetividades da sociedade, do espaço público e do discurso político”.
O ministro inclusive admitiu que o governo atropelou o debate ao baixar uma cautelar administrativa exigindo remoção de conteúdos de Google e Facebook. “Estamos discutindo a teoria do risco, temos feito reflexões e estamos ofertando ao debate. Começamos pelo Código de Defesa do Consumidor, inclusive com aplicação de sanções a algumas plataformas, que na nossa visão têm infringido o dever de cuidado, ínsito a qualquer atividade econômica.”
Em linha semelhante, mas ainda mais enfático, o ministro do STF Alexandre de Moraes defendeu mudanças na forma como é tratada a responsabilização das plataformas, particularmente depois dos episódios de destruição da democracia protagonizados por partidários de Jair Bolsonaro inconformados com o resultado eleitoral.
“Todos concordam que o modelo atual é absolutamente ineficiente. Destrói reputações, destrói dignidades, fez com que houvesse aumento no número de depressão entre adolescentes, suicídios entre adolescentes, sem contar a instrumentalização que houve, de todas as plataformas e big techs, no dia 8 de janeiro, para o que vimos que ocorreu. É um modelo falido. E não só no Brasil, mas no mundo todo. Não é possível continuarmos achando que as redes sociais são terra de ninguém, sem responsabilidade alguma”, disse Moraes.
Ainda que não sejam “todos”, o uso da internet para a disseminação de mentiras, ataques a grupos e instituições parece mesmo construir um consenso de que algo precisa ser feito no campo legal. A dúvida é se o julgamento de dois recursos especiais no STF são o campo para tal mudança do “modelo falido”. Tratam-se de ações movidas por Facebook e Google que buscam reforçar a legalidade do artigo 19 do Marco Civil, aquele que isenta plataformas de responsabilidade pelas postagens dos usuários:
“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
Esse texto não surgiu do nada. Entre várias inspirações, a principal é a seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, dos Estados Unidos, que da mesma forma preserva as plataformas de serem responsabilizadas pelo que publicam os usuários – embora por lá o princípio seja muito mais abrangente que no Brasil. . Ele existe especialmente para evitar censura por parte das plataformas. Ou, como explicou o gerente jurídico do Facebook no Brasil, Rodrigo Martins, “a declaração de inconstitucionalidade levaria a um aumento considerável da remoção de conteúdos, como forma de mitigação de riscos jurídicos”.
O risco, assim, é do chamado ‘efeito inibidor’, ou seja, que responsabilizar diretamente as plataformas pelo que postam os usuários levará, primeiro, ao monitoramento total do que é publicado e, consequentemente, a decisão de remover para evitar ações judiciais. “Responsabilizar leva a um poder genérico de monitoração de todos os conteúdos”, disse o advogado sênior da Google, Guilherme Sanchez. Foi para evitar dar esse poder às redes sociais que o Marco Civil da Internet, a Lei 12.965/14, o transferiu ao Poder Judiciário.