A pandemia como fator de aceleração de transformação digital
Um dos efeitos mais eloquentes e imediatos da Covid-19 e do necessário isolamento social dela decorrente é a sensação coletiva de relativa pausa. “Eu sei, a vida não para”, fazendo uso de um verso escrito pelo músico e compositor brasileiro conhecido como Lenine.
Sem embargo, fato é que interações sociais foram sobrestadas. Incertezas de medidas e sobre o estado das expectativas se multiplicaram. Planos foram procrastinados. Uma abrupta desaceleração da atividade econômica é observada. A cadeia de valor de vários segmentos produtivos foi fortemente impactada.
As fotos de frotas de aviões estacionadas nos pátios dos principais aeroportos do mundo, bem como de ruas desertas de várias metrópoles, são reveladoras, emblemáticas e exemplificadoras dessa sensação. Atestam que, tanto do ponto de vista social quanto econômico, são muitas as externalidades negativas derivadas da pausa imposta pela pandemia.
Nesse contexto, alguns podem equivocadamente compreender essa pausa apenas como um atraso. Um aumento de latência, para fazer uso de um vocábulo do campo das redes de telecomunicações.
É bem verdade que, seja em tempos extraordinários ou de normalidade social (sem entrar no mérito da intersubjetividade e do conhecimento social que esse conceito pode importar), somos diariamente apresentados a perspectivas que podem ensejar uma compreensão equivocada sobre a pertinência de uma pausa.
Contudo, a relevância de uma “pausa reflexiva” não é algo que fique, digamos, tecnologicamente obsoleta. Não se olvida que exige uma dose de paciência. Paciência para ouvir e para ser ouvido no contexto da velocidade sem precedentes de nossas conexões diárias.
Dessa forma, uma pausa é também uma oportunidade para reflexões, muito embora é preciso ter ciência que quaisquer pretensões relacionadas à plena compreensão das consequências da crise desencadeada pelo coronavírus precisarão ser precedidas de muito estudo e tempo de observação. A complexidade do atual contexto evidencia percepções ao mesmo tempo que promove questionamentos sobre convicções anteriormente firmadas. Há novos desafios, perspectivas e oportunidades.
De fato, são muitas as reflexões que nos serão apresentadas em um ambiente global progressivamente interconectado, hiperconectado e, conforme muito bem nos admoesta essa pandemia, interdependente.
Esse ambiente global combinado com as lições que já podem (e devem) ser aprendidas de uma crise sem precedentes, propicia uma conjuntura singular para uma reflexão mais detida acerca da importância e essencialidade dos serviços e aplicações digitais.
Soluções digitais têm sido impulsionadas à medida que se revelam eficazes para endereçar os mais variados desafios que a crise nos impõe a todos. O confinamento tem ensinado que custos de transação podem ser significativamente reduzidos e ganhos de produtividade logrados a partir do uso mais intensivo e inteligente de mecanismos digitais.
Para muito além disso, possibilidades de distribuição de renda, inclusão social, provimento de saúde e educação ganharam novos contornos a partir das soluções digitais que têm sido incorporadas nesses diferentes processos. O Estado tem descoberto meios mais eficazes e eficientes de promover políticas públicas e de amparar os mais vulneráveis.
Ao potencializar capacidades, um novo patamar foi galgado em termos de compreensão coletiva sobre o uso das TICs como instrumento de empoderamento dos cidadãos bem como de promoção de cooperação e solidariedade social. A inclusão digital passa a ser compreendida não apenas como uma chave econômica, mas, sobretudo, uma chave social e até mesmo de sobrevivência.
A adoção mais intensa das ferramentas digitais foi forjada pelas limitações impostas pela crise e pela disponibilidade de respostas e saídas tecnológicas para os mais diversos problemas por ela agravados. Esses foram os principais fatores catalisadores e não uma decisão de política pública.
Por tal razão, é curioso que as oportunidades geradas pelas soluções digitais para o enfrentamento da crise e de seus impactos negativos ensejem um misto de otimismo e perplexidade. O primeiro decorre do potencial revelado de serviços e aplicações digitais.
Já o segundo resulta da constatação da incapacidade que muitos países, em maior ou menor medida, têm tido para priorizar e materializar uma estratégia digital. Nesse sentido, ao observar as políticas públicas adotadas no contexto pré-COVID-19, parece ter faltado estratégia, ousadia e coragem digitais. Em alguns casos, sobraram timidez e negligência em relação à compreensão das TICs como fator de crescimento e desenvolvimento econômico.
Não obstante, “seja pelo amor ou pela dor”, dito popular no Brasil, uma transformação digital está sendo experimentada durante a pandemia. Apesar da sensação de pausa, Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, exprime com propriedade que “a única constante é a mudança”.
Na era desta transformação, todas as organizações e todos os setores são parceiros potenciais. Importa, pois, que seus efeitos positivos não fiquem adstritos às circunstâncias da crise, mas que perdurem e sejam maximizados.
Para isso, será necessária uma reflexão sobre a construção de novas e robustas estratégias para a transformação digital, que visem a preparar os países para uma economia baseada em dados num mundo de dispositivos conectados, além, por óbvio, para um governo e uma democracia digitais, ou seja, uma sociedade digital.
Nessa esteira, é fundamental o hígido entendimento sobre a importância do desenvolvimento das telecomunicações. Cuida-se de elemento basilar para impulsionar a vocação digital dos países. A disponibilidade de infraestrutura de telecomunicações é um componente determinante para a evolução do ecossistema digital.
Em outros termos, um elemento decretório para o sucesso de qualquer estratégia digital. Na prática, tal infraestrutura fornece conectividade aos participantes da cadeia de valor digital. Não há conectividade sem infraestrutura de telecomunicações.
Ao passo que apresentado a novas perspectivas, o processo de aprimoramento das redes de telecomunicações é tolhido por adversidades históricas. No que concerne às oportunidades, se o padrão 4G mudou a vida das pessoas, o 5G irá remodelar a sociedade e os meios produtivos. Não se trata de apenas mais um G, mas de um guarda-chuva que envolve e potencializa várias tecnologias.
Além de um incremento de velocidade de conexão, conforme ocorreu na transição da tecnologia de terceira para quarta geração, o padrão IMT-2020 tem outras facetas, notadamente aquelas relacionadas à internet das coisas, tanto para aplicações massivas quanto para aquelas que são sensíveis ao atraso. A transição para o 5G, tecnologia ainda na sua primeira infância, é um catalisador da inovação e de novas tecnologias, como Inteligência Artificial, robótica e Realidade Virtual.
Estamos a falar de uma rede crescente de dispositivos conectados associada a uma incrível capacidade computacional proporcionada cada vez mais pela nuvem, com insights provenientes da análise de big data e inteligência resultantes do aprendizado da máquina. Com a maturação desse ecossistema, as redes suportarão uma multitude de serviços diferentes, com uma quantidade imensa de distintos requisitos, ofertados por meio de uma rede que se autoconfigura conforme o tipo de utilização.
O potencial transformacional resultante de aplicações de AR e VR é incalculável. Revoluções podem ser alcançadas nas áreas de saúde, educação tradicional, treinamento profissional e segurança pública. Estamos diante do nascedouro de uma plataforma tecnológica chave para a quarta revolução industrial e para o aumento da produtividade a partir da digitalização das cadeias de valor de diferentes indústrias.
Evidentemente ainda será necessário tempo para desenvolver todos esses novos conceitos, inclusive aqueles relacionados ao fatiamento e autoorganização das redes. E, no que tange às aplicações, vale lembrar que as pessoas nunca usam a tecnologia apenas da forma como os engenheiros a projetam. Portanto, a criatividade humana sempre joga um papel de destaque.
Quanto aos desafios, é preciso superar barreiras que obstam o desenvolvimento dessa infraestrutura e dos serviços de conectividade que ela propicia. Afinal, a retomada da atividade econômica dependerá, em grande medida, dessa infraestrutura e de seus efeitos transversais.
No Brasil, em particular, verifica-se uma carga tributária incompatível e discrepante com a essencialidade dos serviços. Aliás, é comparável àquela aplicada a bens demeritórios. O chamado Fundo para Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), cujo propósito fixado em lei é assegurar, a toda a população, o acesso às telecomunicações, em condições justas e adequadas, tem sido sistematicamente utilizado tão somente para fins fiscais.
Essa orientação inviabiliza a destinação de recursos para a expansão de infraestrutura nas áreas desprovidas de atratividade econômico-financeira. Enquanto isso, o fosso digital e suas consequências sociais se aprofundam. E se há uma coisa que esta crise já ensinou, é que é necessário agir antes que os problemas se acumulem.
Ainda como provimento de exemplo, a dificuldade em conseguir licenças municipais para a instalação de torres e sítios de antenas de telecomunicações igualmente prejudica a expansão da cobertura das redes e a qualidade dos serviços nas grandes cidades brasileiras. Essas infraestruturas de suporte, ditas “passivas”, muitas vezes esbarram na burocracia e fragmentação de competências locais ou mesmo em regras de instalação desnecessárias e inadequadas.
Enfim, a dinâmica das telecomunicações e sua contribuição para o desenvolvimento do ecossistema digital passa pela superação de muitos desafios, alguns históricos, e pela maximização das oportunidades tecnológicas que se apresentam.
Assim, líderes, seja da esfera pública ou privada, envolvidos no desenvolvimento da infraestrutura de telecomunicações, e na elaboração das estratégias digitais, têm uma responsabilidade ainda maior no sentido de redobrar esforços e imprimir soluções criativas para que a agenda das telecomunicações e da sociedade digital seja desde já efetivamente priorizada.
Ao fim, a pausa para reflexão que a presente crise oferece tampouco pode constituir uma armadilha para especulações estéreis ou consumir-se na solução dos problemas mais imediatos. Que saibamos fazê-la de maneira produtiva, orientada para a formulação de novas medidas e estratégias, de modo que a transformação digital nas sociedades pós-Covid-19 seja impulsionada.
* Leonardo Euler de Morais é Presidente da Anatel