Opinião

ELLALink no caminho de um novo modelo de governança da Internet

A América Latina esta prestes a receber um novo cabo submarino que a conectará com a União Europeia: o ELLAlink. Além de uma oportunidade para fortalecer a inclusão digital do continente e reduzir os custos de acesso, o cabo traz um modelo de governança inovador que abre uma grande esperança para o reconhecimento da Internet como um bem comum da humanidade, dedicando uma parte de sua banda larga para a comunicação de organizações não-comerciais.

A pouco mais de um ano de sua operacionalização, é urgente a convocação de uma agenda pública de diálogo sobre o tema em um contexto de forte pressão por parte do setor privado comercial no Brasil.

Link para versão original em Francês

O programa de soberania digital lançado por Dilma Rousseff marca a continuidade de uma preocupação antiga do Estado brasileiro desde as primeiras horas da Internet. O desenvolvimento da rede no Brasil se deu principalmente a partir de uma iniciativa não-comercial, a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), criada em 1989 antes da chegada dos primeiros operadores comerciais, para promover uma rede universitária no país.


Após uma breve tentativa de comercialização, a RNP continuou estendendo suas atividades no território e conta hoje com 1300 pontos atendidos, inclusive na Amazônia. Ao lado do Comitê Gestor da Internet (CGI), criado em 1995, a RNP é um dos pilares do modelo brasileiro de governança da Internet, que busca garantir a representação de todos os setores envolvidos no desenvolvimento da Internet no Brasil e mitigar a influência dos interesses privados na gestão do tráfego e dos conteúdos.

Os objetivos da RNP evoluíram ao longo dos últimos 25 anos. A cooperação com centros científicos latino-americanos e europeus demanda hoje uma rede de interconexão potente, fiável e barata desde a abertura do Observatório do Cerri Paranal no Chile, onde serão produzidos em breve 70% dos dados astronômicos do mundo.

Essa crescente interdependência conduziu a RNP e seus parceiros europeus a desenvolver desde os anos 90 uma política voluntarista para obter melhores acordos tarifários com os operadores comerciais e assim desviar suas comunicações do monopólio norte-americano sobre a banda larga internacional. Hoje o custo de acesso ao tráfego mundial de dados via os Estados-Unidos ainda é dez ou até vinte vezes maior para América Latina que para Europa.

Consequentemente, desde 2002, países latino-americanos e europeus lançaram um programa ambicioso de colaboração cientifica e tecnológica para potencializar a conectividade entre os dois continentes. Disso vingou o cabo submarino entre o Portugal e o Brasil, o European Link do Latin America (ELLA), de uma capacidade de 72 Tb por segundo para conectar a rede universitária europeia GEANT e sua homologa sul-americana RedCLARA. Financiada em parte pela Comissão Europeia (ALICE 1&2), esse projeto garante um direito de uso irrevocável (IRU) às organizações cientificas e com fins não lucrativos para utilizar livremente uma parte da banda larga do futuro cabo submarino.

Um modelo de governança inovador

Três outros projetos de cabos submarinos estão em curso no Atlântico Sul, mas ELLALINK é o único que representa uma verdadeira inovação para governança mundial da Internet. Primeiramente, representa uma oportunidade de reduzir os custos do acesso à banda larga internacional, hoje estreitamente controlada por um conjunto de operadores privados que congelaram os preços a um nível desnecessariamente alto, apesar da privatização da Embratel em 1998, do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) promovido pelo Estado e da rede de pontos de troca de tráfego (PTTMetro) capitaneada pelo CGI desde os anos 2000.

Em seguida, ELLAlink oferece uma nova rota para o tráfego mundial atualmente controlado em mais de 99% por multinacionais norte-americanas. Essa nova conexão com a União Europeia, cuja legislação para proteção de dados pessoais está entre as mais avançadas do mundo abre também a possibilidade de aprofundar os trabalhos legislativos nesse ramo na América Latina. O tema que mostrou sua importância quando as revelações de Edward Snowden em 2013 tornaram público o sistema de vigilância de massa operado pelos Estados Unidos, causando um escândalo diplomático que acelerou a concretização do projeto de descentralização das rotas de troca de dados.

Por fim, e o mais importante, esse cabo submarino prevê um esquema de governança inovador que poderia tornar-se um modelo de referência para o conjunto da rede Internet. O consorcio ELLALink é composto por parceiros heterogêneos: empresas de telecomunicação que operam a parte comercial do cabo (Telebras com 35 % e a espanhola Ellalink com 65 %) e os operadores não-comerciais (GIANT e Red-CLARA). Os documentos disponíveis online sobre o projeto confirmam que esses operadores não-comerciais possuirão uma parte da banda larga durante toda a duração da vida do cabo e poderão utilizá-la para favorecer não só a cooperação científica e universitária entre Europa e América Latina mas também qualquer atividade não comercial que necessitaria de uma conexão Internet – desde que nenhuma vantagem lucrativa seja derivada desse direito de uso irrevocável.

Trata-se de uma verdadeira revolução no modo de governança dos cabos submarinos que até então foram utilizados quase exclusivamente para fins comerciais. A multiplicação de cabos destinados aos fluxos financeiros de alta frequência mostra que a tendência só está crescendo. Desta forma, o fato de atribuir um direito de uso irrevocável aos agentes não-comerciais representa uma perspectiva promissora de promover a defesa dos bens comuns a respeito das infraestruturas mundiais de telecomunicações e garantir assim o direito humano fundamental de acesso à Internet. Isso remete a referência histórica do Congresso de Viena, em 1815, que acatou o fim das taxas de alfândega e a livre circulação nos rios europeus, considerados desde então como bens comuns.

Hoje, a opacidade dos processos deliberativos prevalece nos acordos dos consórcios comerciais clássicos, principalmente no âmbito dos provedores de backbone, e contribui favorecendo a desigualdade do acesso à banda larga internacional, a insegurança dos dados que transitam nos cabos e ainda às interferências que afetam a neutralidade da rede. A dualidade da rede entre utilização comercial e não-comercial poderia propiciar à parte da rede um funcionamento com novas bases em relação à rede comercial, garantido mais proteção especificadamente no âmbito da neutralidade, como atesta o plano publicado recentemente pela agência norte-americana de regulação das comunicações (FCC).

A entrada de organizações com fins não-lucrativos na governança das infraestruturas abre também a porta à participação de um ecossistema baseado na cooperação e a colaboração como as Redes Comunitárias ou as Redes Mesh. Por fim, partindo da necessidade de preservar uma rede aberta para favorecer a cooperação cientifica e a observação astronômica, esse projeto volta às origens da internet, e à importância da distinção entre nomes de domínios comerciais (.com) e de interesse público (.org).

Ainda há muito chão pela frente

Mas esse cenário promissor não será sem dificuldades e é importante que setores acadêmicos e da sociedade civil apropriem-se desde já dos desafios que o ELLALink traz. No Brasil a influência do setor comercial sobre o Estado ameaça atualmente a legitimidade do modelo multissetorial vigente há mais de 20 anos no CGI.

A consulta pública lançada unilateralmente pelo ministério das telecomunicações em meados de 2017 para redefinir o modelo de governança da Internet deu um sinal de alerta para todo o setor. Por outro lado o projeto de lei PLC 79/2016 que tramita no Senado desde o ano passado tem o objetivo de acabar com o sistema de concessões de regime publico dos bens reversíveis transformando-as em autorizações no regime privado entregues por um preço dez vezes inferior ao valor estimado e sem exigência de contrapartida.

Da mesma forma, o satélite geoestacionário de defesa e de comunicação (SGDC), obra bilionária financiada com recursos públicos e lançada em orbita esse ano, terá sua parte inicialmente prevista para universalização do acesso nas regiões afastadas do país, leiloada para o setor privado sem acordos prévios e fiscalização sobre cumprimento das metas.

Com o estágio do projeto já avançado, o modelo de governança do ELLAlink ainda precisa ser detalhado e discutido com os setores interessados. Como será definida a porção de banda larga destinada as atividades não comerciais? Quais instâncias de fiscalização garantirão esse acesso, sua qualidade e neutralidade? Qual autonomia os setores acadêmico e com fins não lucrativos terão para distribuir de maneira equitativa o acesso ao cabo? Um amplo debate público é necessário para dar a esse projeto promissor todas as chances de ver a luz tal como ele está sendo pensado hoje.

* Félix Blanc é doutor em filosofia, membro da ONG Internet Sans Frontières e pesquisador convidado no CTS/FGV (Centro Tecnologia e Sociedade/ Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro)
Florence Poznanski é cientista politica e ativista, diretora da ONG Internet Sem Fronteiras – Brasil
Revisão Diego Vicentin

Botão Voltar ao topo