Opinião

Lei do Fust: Quando as desigualdades socioeconômicas importam

Impossível não destacar que o retardo de 20 anos dessa reforma impediu que R$ 22 bilhões, pagos pelos consumidores de 2001 a 2019, fossem empregados no acesso à conectividade digital para grande parte dos brasileiros. Mas, apesar dos pesares, ainda é tempo de transformar possibilidade em realidade e que seja com brevidade. Os deveres de universalização, conforme a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), são conceituados como aqueles que objetivam possibilitar o acesso de qualquer pessoa aos serviços de telecomunicações, independentemente de sua localização geográfica ou condição socioeconômica, nos termos do inciso II do art. 81 da citada lei.

Infelizmente os termos do artigo 81 foram inseridos nas disposições do Capítulo I – Das Obrigações de Universalização e de Continuidade, do Título II – Dos Serviços Prestados em Regime Público, da LGT. Assim, os recursos arrecadados só podiam ser destinados à cobertura de custos com universalização dos serviços nos termos dos contratos de concessão, portanto no serviço telefônico fixo comutado, o único serviço prestado em regime público. Foi um erro estratégico capital.

O Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), para o qual contribuem os usuários de serviço de telecomunicações nos regimes público e privado, foi delineado pelo Poder Executivo no projeto de lei enviado ao Congresso Nacional em 1997. Entretanto o projeto só foi sancionado com a Lei 9.998, de 17/08/2000. Foram três anos de tramitação legislativa de uma lei que nasceu morta, sem objeto. Antes, o projeto da LGT (vital para o setor), mandado ao Congresso em 10/12/1996, foi sancionado em 16/07/1997 após sete meses de tramitação legislativa.

Ao tratar das questões relativas à universalização das telecomunicações no País nos faltou ampliar o objetivo de toda e qualquer política pública: a melhoria das condições de vida dos cidadãos. O desafio das autoridades brasileiras envolvidas, em face da irreversibilidade da globalização da economia, deveria ter como foco a democratização do acesso às novidades tecnológicas. Mas o objetivo estratégico, alvo dos poderes constituídos, de trabalhar para que medidas socioeconômicas relativas ao Fust fossem aprovadas no Congresso não foi priorizado ao longo de duas décadas.

De 2000 a 2020, a ausência de uma política pública para utilizar o Fust era reclamada por segmentos da sociedade. A LGT e a Lei do Fust precisavam ser adequadas para serem suficientemente amplas de modo a cobrir as inovações da convergência tecnológica. O acesso ao telefone, essencial no passado, metamorfoseou-se para o acesso digital às tecnologias da informação e comunicação. Tanto que um projeto de lei que alteraria a Lei do Fust foi apresentado no PLS 103/2007 pelo então senador Aloízio Mercadante. Porém o projeto ficou a tramitar por 13 anos no Congresso, sem aprovação.


Contudo o PL 172/2020, que tem como origem o PLS 103/2007, é de extrema relevância para a inclusão digital de grande parte da população. A receita do Fust (assim como do Fistel e Funttel), ano a ano, monta excesso de arrecadação e gera superávit financeiro que é transferido para o Tesouro Nacional. A Lei do Fust (art. 11) diz que o saldo positivo, apurado no balanço anual, será transferido como crédito do mesmo Fundo para o exercício seguinte. Então os três fundos são desvirtuados para aplicações que não àquelas dispostas nas leis que os criaram. Em 2015, no artigo “Excessos de arrecadação nos fundos de telecomunicações”, escrevi a respeito da questão dos fundos setoriais.

A redação original do PLS 103/2007 tinha por objetivo utilizar recursos do Fust no acesso às redes digitais de informação para os profissionais de educação e estudantes nos estabelecimentos públicos e particulares de educação básica e superior. No texto ora sancionado o uso do Fust é ampliado para diversas finalidades. Entre elas: expansão, uso e melhoria da qualidade das redes e dos serviços de telecomunicações; redução das desigualdades regionais em telecomunicações; e promoção do uso de novas tecnologias de conectividade para desenvolvimento socioeconômico. Agora, tanto serviço prestado em regime público quanto em regime privado poderão receber recursos do Fundo.

No Brasil o Fust arrecada anualmente perto de R$ 1 bilhão. É muito? É pouco? Ao buscar boas práticas de conectividade digital encontramos nos EUA o programa denominado Lifeline (https://www.fcc.gov/general/lifeline-program-low-income-consumers), que criado em 1985, faz parte do Fundo de Serviço Universal e tem por objeto as pessoas de baixa renda. Na sua origem era aplicado apenas ao serviço telefônico. Mas em 2016, de forma exemplar para o mundo, a FCC (Federal Communications Commission) modernizou o programa, ao incluir o acesso à banda larga no seu contexto. Anualmente o Lifeline proporciona US$ 8 bilhões às pessoas de baixa renda. Em 25/05/2020, escrevi sobre esse tema no artigo “Políticas públicas são urgentes para combater as incertezas”.

Após 20 anos de vigência da Lei do Fust, com quase treze anos de tramitação legislativa, a reforma legal foi finalmente sancionada pelo presidente da República Jair Bolsonaro; na Lei 14.109/2020, publicada hoje (17/12/2020); com as diretivas contidas no PLC 172/2020, aprovado pelo Senado em 19/11/2020. O texto final; que resulta em parte do substitutivo aprovado pela Câmara em 2019, com ajustes feitos pelo Senado; foi aprovado com vetos do presidente da República, sujeitos à rejeição, ou não, pelo Congresso. Trata-se de uma política pública propícia à equação da disparidade digital.

Assim, investimentos poderão ser destinados às modernas demandas da sociedade, principalmente no acesso à internet em banda larga, e não à perecível telefonia fixa objeto da concessão (que poderá migrar, ou não, para autorização) que perde assinantes, receita e valor. Agora, observadas as disposições legais, cabe ao Poder Executivo regulamentar a política reformada, incluindo as diretrizes. Ao Ministério das Comunicações e Anatel compete implementar, em suas esferas de atribuições, as medidas necessárias para a universalização da conectividade digital.

Mas para implementar a política disposta na lei reformada será necessária atenção à sua regulamentação, pois embora a tecnologia e a regulação possam permitir a interseção dos diferentes conjuntos (incluindo os conjuntos vazios) existentes entre nós brasileiros, elas podem aumentar o desequilíbrio e a distância persistentes entre classes, raças e gêneros, ainda mais quando as desigualdades socioeconômicas importam.

*O autor é Engenheiro Eletricista. Foi ministro de Estado das Comunicações e presidente da Anatel.

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