Opinião

Os riscos da estatização das identidades digitais

Ao imaginar um mundo moderno, talvez surjam imagens de um cenário futurístico, como no desenho animado “Os Jetsons”, com carros voadores e cidades suspensas, ou até mesmo uma convivência amigável em sociedade entre humanos e robôs. Mas, a realidade é que a transformação digital acelerada está nos levando para mais perto da visão de George Orwell, refletida na obra “1984”, ou de Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”.

A partir de 2010, com a revolução na Tunísia contra o regime ditatorial de Ben Ali, que deu início à chamada Primavera Árabe, cientistas políticos e sociólogos têm estudado as consequências positivas ou desafiadoras para a democracia sobre a influência dos meios digitais na organização da sociedade.

A Primavera Árabe foi um grande movimento de protestos e revoluções em países do Oriente Médio e do norte da África contra regimes autoritários, fortemente marcado pela organização civil através das redes sociais, dando um primeiro exemplo de como as “novas” tecnologias poderiam ser utilizadas de forma ampla para organização social na sociedade moderna e contemporânea. 

Mais de 10 anos se passaram e a participação das redes sociais no dia a dia dos seus usuários se expandiu para além da comunicação interpessoal. As redes sociais se tornaram protagonistas das eleições presidenciais de 2016 e 2020, nos Estados Unidos, e de 2018, no Brasil. E, provavelmente, é lá que ocorrerão os principais debates em relação às eleições de 2022.

É sabido que, com o objetivo de manter o usuário mais tempo no aplicativo, os algoritmos utilizam as informações pessoais, hábitos, curtidas, interações e cliques para traçar um perfil e, a partir disso, apresentar conteúdos relacionados às suas preferências. Inclusive, o seu perfil de acesso à rede social é amplamente utilizado para autenticar o usuário em outras plataformas, como lojas de comércio eletrônico e outros aplicativos, para citar alguns exemplos.


No entanto, o usuário tem a liberdade de sair da plataforma digital a qualquer momento, assim como tem autonomia sobre o nível de informações que ali compartilha e para decidir se vai e com quem vai compartilhar esses dados. Além disso, no Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados é uma aliada do usuário em defesa do tratamento de seus dados pessoais, principalmente por empresas privadas.

A situação é inversa quando é o próprio governo que oferece a identidade digital para o cidadão utilizar os serviços públicos eletrônicos disponíveis em plataforma digital de e-Gov (governo eletrônico), cria as bases de cadastro centralizadas dos cidadãos e, ainda, a utiliza para reconhecer manifestações de vontade em relação às solicitações, atendimentos e transações com a administração pública. No Brasil, essas inciativas estão centralizadas através do portal Gov.br, plataforma de governo digital, e do Cadastro Base do Cidadão, criados por meio de decretos da Presidência da República.

A situação é de vulnerabilidade para o cidadão, diante desse gigante que se apropria dos seus dados e apresenta o seu “produto” como a única opção para que possa realizar interações eletrônicas, se não obrigatórias, extremamente necessárias com os serviços públicos. 

É um relacionamento ainda mais sensível para o cidadão, quando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ao contrário de exemplos como da Inglaterra ou da União Europeia, traz como regra que o Estado possa coletar, tratar e compartilhar os dados pessoais dos cidadãos seguindo normas discrepantes – e menos rígidas – em relação à iniciativa privada, chegando a dispensar o consentimento do titular dos dados quando forem necessários para a execução de políticas públicas.

Nos países europeus, pelo contrário, a regra é que os dados sejam tratados pelo Estado apenas em exceções, de acordo com regras específicas editadas em acordo com o direito fundamental à proteção.  As iniciativas de transformação digital do setor público no Brasil não são recentes e as primeiras ações datam, pelo menos, dos anos 2000, com a criação do Comitê Executivo do Governo Eletrônico.

O colegiado, composto por membros do Executivo, tinha o objetivo de “formular políticas, estabelecer diretrizes, coordenar e articular as ações de implantação do Governo Eletrônico, voltado para a prestação de serviços e informações ao cidadão”, conforme disposto no Decreto de 18 de outubro de 2000. A transformação digital do setor público é necessária para acompanhar o desenvolvimento da sociedade e da economia e, quando bem aplicada, pode trazer inúmeras vantagens para os cidadãos e o Estado.

Algumas vantagens que podem ser citadas são a universalização de acesso e a simplificação dos serviços públicos; a redução de custos e do maquinário do Estado; a redução de fraudes; a realocação de investimentos em áreas mais necessitadas; a melhor implementação de políticas públicas; redução de filas; ampliação dos programas assistenciais; e aumento da rapidez na prestação dos serviços. 

O outro lado dessa história – aquele que deve ser combatido – é a modernização do Estado se transformar em um projeto inflado, em que o governo oferece mais do que deve aos cidadãos, invadindo competências legislativas e contrariando a liberdade econômica e a livre iniciativa.

O digital facilita que o governo expanda sua área de atuação – já que os custos são menores e a implantação é mais rápida – o que pode possibilitar a criação de um grande Leviatã, como Thomas Hobbes apresentou no século XVII ou de um grande Big Brother, como o de George Orwell, na obra 1984, e é contra isso que devemos nos posicionar. 

Thaís Covolato é coordenadora do Comitê de Identidades Digitais da Câmara Brasileira da Economia Digital (Camara-e.net), principal entidade multissetorial da América Latina e entidade brasileira de maior representatividade da Economia Digital, de acordo com a OCDE. 

 

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