Para além dos bloqueios: queremos mudanças no modelo brasileiro de Internet?
A camada de transporte não deve decidir sobre conteúdo. A camada de aplicação não deve impor regras ao roteamento. E nenhum ator isolado deve concentrar prerrogativas capazes de remodelar unilateralmente o ecossistema.

Por Antonio M. Moreiras*
Os pedidos de bloqueio de IPs e nomes de domínio recebidos pelos provedores brasileiros chamam atenção não apenas pelo impacto operacional, mas pelo que revelam sobre o momento regulatório que vivemos. Essas solicitações expõem limitações técnicas conhecidas e, não raro, certo desconhecimento de como a arquitetura da Internet funciona. Não é possível bloquear URLs via DNS. Endereços IP são compartilhados por inúmeros serviços. Qualquer tentativa de filtragem na camada de rede, pensando em conteúdo, produz efeitos colaterais que ultrapassam em muito o alvo original. A Internet não foi construída para esse tipo de intervenção, e a infraestrutura de encaminhamento operada por ISPs e IXPs nunca foi o local adequado para isso. Essas iniciativas frequentemente confundem camadas da arquitetura, atribuindo ao DNS ou ao roteamento funções que não lhes pertencem.
O ponto mais relevante não é o problema técnico isolado, mas o contexto em que tudo isso aparece. A sistematização dos bloqueios ocorre justamente quando diferentes iniciativas passam a reposicionar a relação entre infraestrutura, regulação e governança da Internet no Brasil. A ideia de que a rede precisa de mais controle estimula propostas que, somadas, começam a alterar uma arquitetura institucional que funcionou bem por três décadas.
A Norma 4 de 1995 é um exemplo central dessa possível inflexão. Ela não é apenas um regulamento técnico. Estabelece a separação entre telecomunicações e conexão à Internet e permitiu que o ecossistema brasileiro se desenvolvesse com pluralidade, inovação e competição. Esse arcabouço viabilizou a atuação de milhares de provedores regionais e de instituições como o CGI.br, o NIC.br e o IX.br. A simples tentativa de substituir essa norma altera fronteiras e sinaliza um novo entendimento sobre o que a Internet é e sobre o que ela pode vir a ser.
Esse movimento ocorre junto de outros igualmente sensíveis. Um deles é a proposta de ampliar a missão do regulador de telecomunicações para incluir também funções de segurança cibernética. A instituição que assumiria responsabilidades de segurança é a mesma que hoje já realiza bloqueios que têm se mostrado tecnicamente inadequados e causadores de danos colaterais importantes.
Atribuir novas funções justamente a quem intervém de forma equivocada na rede, demonstrando compreensão limitada de seu funcionamento, é um caminho arriscado. Como já documentado em análises técnicas internacionais, mecanismos de bloqueio tendem a produzir filtragens amplas, difíceis de calibrar e, muitas vezes, inefetivas.
Além disso, a lógica regulatória baseada em sanções é incompatível com o modelo de cooperação necessário para respostas eficazes a incidentes de segurança. Onde há medo de punição, não há compartilhamento de informações ou cooperação voluntária, imprescindíveis para combater as ameaças no mundo digital.
Esse cenário afeta também o mercado, especialmente os provedores regionais que respondem pela maior parte das conexões fixas do país. Muitos operam com equipes enxutas. A sobrecarga regulatória pode afastar operadores pequenos, reduzir a diversidade de infraestrutura e favorecer a concentração em grandes grupos. Um ambiente de interconexão saudável depende de pluralidade, autonomia e abertura. Nenhum país se beneficia quando sua rede se torna menos plural e mais dependente de poucos atores.
Para os usuários, os efeitos também são perceptíveis. Intervenções imprecisas podem degradar serviços legítimos, incentivar soluções que contornam a infraestrutura nacional e reduzir a transparência sobre o funcionamento da rede.
Quando sites e aplicativos deixam de funcionar sem explicação, instala-se um vazio de confiança que se multiplica a cada camada da experiência digital e a compromete como um todo. Esses efeitos colaterais são típicos de medidas de bloqueio descoordenadas, amplamente documentadas na literatura técnica.
A comunidade técnica brasileira da Internet, historicamente articulada em torno do CGI.br, do NIC.br e do IX.br, tem se mobilizado para chamar atenção para esse cenário. Não se trata de rejeitar mudanças, mas de preservar um princípio fundamental da Internet. Funções distintas exigem responsabilizações distintas.
A própria arquitetura aberta da Internet e documentos como a RFC 7754 (https://datatracker.ietf.org/doc/html/rfc7754) mostram que intervenções eficazes dependem de manter essa separação clara. A camada de transporte não deve decidir sobre conteúdo. A camada de aplicação não deve impor regras ao roteamento. E nenhum ator isolado deve concentrar prerrogativas capazes de remodelar unilateralmente o ecossistema.
O debate sobre bloqueios serve como porta de entrada para uma discussão maior. Ele mostra, de maneira concreta, o que ocorre quando camadas distintas começam a se misturar. E revela como podemos alterar, de forma prejudicial e silenciosa, o modelo que nos trouxe até aqui, modelo reconhecido internacionalmente por ser aberto, participativo, plural e sobretudo por manter funções bem separadas e claramente atribuídas.
Esse debate será aprofundado na 15ª Semana de Infraestrutura da Internet no Brasil (https://semanainfra.nic.br/), realizada pelo NIC.br e pelo CGI.br entre 15 e 19 de dezembro, em São Paulo, com participação presencial e transmissão ao vivo. A Semana reúne GTS, GTER, Fórum BCOP e, sobretudo, o IX Fórum, ponto alto da programação.
No IX Fórum, o tema deste artigo será explorado em profundidade em duas sessões complementares. Além disso, o evento contará com keynotes internacionais. Craig Labovitz discutirá a evolução dos ataques DDoS em hiperescala. Jack Jian Xu apresentará o estado da arte em óptica avançada e co-packaged optics. Dave Schwartz, do Google, abordará as estratégias globais de peering da empresa. A programação inclui ainda a apresentação da TIC Provedores 2024, a sessão “Fale com o IX” e outros temas técnicos.
O convite está feito: participe presencialmente ou acompanhe online.
A Internet brasileira, historicamente sólida e bem gerida, tem sido alvo de propostas de transformação muitas vezes unilaterais e aceleradas. O risco é comprometer um ecossistema que, por décadas, operou com estabilidade e colaboração. Entender esse contexto e decidir com base em critérios técnicos sólidos é essencial para quem opera, regula, estuda, usa ou depende dela todos os dias.
* Antonio M. Moreiras é engenheiro eletricista e mestre em computação pela Escola Politécnica da USP, atuando como Gerente de Projetos e Desenvolvimento no NIC.br, onde trabalha para fomentar o desenvolvimento da Internet no Brasil.





