Seria o fim das agências reguladoras?
Pelo sim, pelo não, cabe alertar aos Poderes Executivo e Legislativo, que pegar carona na cauda de medidas provisórias é uma ação reiteradamente praticada nas casas legislativas. Mas, muitas das vezes, essas caronas nada têm a ver com o objeto da medida provisória original. Caberia citar a Bíblia, Capítulo 5, Livro de Lucas: “Ninguém corta um remendo de roupa nova para costurá-lo em roupa velha. Caso contrário, o novo rasga o velho, e o remendo de roupa nova não combina com a roupa velha”.
De carona na cauda da Medida Provisória (MP) 1.154/2023; que tratou da organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, editada pelo presidente da República em 1º/01/2023; há na Câmara dos Deputados uma emenda à referida MP, propondo que os atos normativos infralegais emitidos pelas agências reguladoras passem a ser de competência de conselhos vinculados aos ministérios setoriais. Dessa forma, esses conselhos assumiriam funções das agências reguladoras.
Ressalto que as disposições da MP original alteraram tão somente a organização básica da Presidência da República e dos Ministérios (ato de rotina de todo governo que se inicia), sem abordar as competências das agências reguladoras. Conforme a Emenda, referidos conselhos seriam compostos por representantes do ministério, da agência reguladora vinculada, dos setores regulados, da academia e dos consumidores.
A presença das agências reguladoras, como órgãos de Estado, livres das pressões políticas é indispensável para o sucesso dos investimentos para suprir os setores de infraestrutura no Brasil. Portanto, é relevante a discussão no Congresso Nacional a respeito da autonomia das agências reguladoras. Preservar a independência das agências é imprescindível para que possam implementar adequadamente as políticas setoriais, definidas pelo Poder Executivo ou Legislativo.
A reforma do Estado, que marcou os anos 1990, fez com que o governo passasse de empresário a regulador e formulador de políticas públicas. Começou com a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 8.884/1994), seguida da Lei de Concessões de Serviços Públicos (Lei 8.987/1995) e com as leis gerais, de 1996 em diante. Cabe ao governo fortalecer tais agências, que precisam estar de prontidão para se antecipar à evolução tecnológica, aprimorar competências na percepção de novos modelos de negócios, com foco nos serviços e monitoramento do cenário, a permitir serviços a custos mais competitivos.
A reforma ou a instituição de estatutos constitucionais, ou legais, para serem factíveis precisam de planejamento e amplo comprometimento. Uma agenda a envolver grandes reformas, por natureza, é lenta. Desde a Independência do Brasil (1822), tivemos dois imperadores, estamos no 39º presidente da República e na 7ª Constituição Federal. Nesses 200 anos de história, não há como imaginar as dificuldades governamentais que ocorreram na econômica, marcada por temas proporcionais ao tamanho do País. Tanto que somente nos anos 1990 ocorreram as reformas do aparelho estatal.
Em artigo publicado no site Convergência Digital, coluna Opinião, em 26/09/2022, sob o título “O voto popular, as agências reguladoras e as iniciativas inconsequentes”, https://www.convergenciadigital.com.br/Opiniao/O-voto-popular%2C-as-agencias-reguladoras-e-as-iniciativas-inconsequentes-61546.html?UserActiveTemplate=mobile, destaquei que uma agência reguladora é peça-chave para inspirar (ou não) a certeza dos investidores na estabilidade das regras dispostas para o mercado. Uma entidade dotada de competência técnica e de independência decisória inspira confiança. Ao contrário, uma organização sem autonomia gerencial, com algum tipo de dependência restritiva gera desconfiança e, consequentemente, afugenta os investidores.
As agências diferem de outros organismos governamentais porque têm de tomar decisões que pressupõem o exercício de poder discricionário. Para que elas sejam eficientes e eficazes faz-se necessário que disponham de competência técnica e desfrutem de liberdade gerencial, autonomia, prestem contas e disponham de regras e controles internos para limitar decisões monocráticas.
Para o exercício de suas competências legais as agências dispõem, como órgãos superiores, dos Conselho Diretor e Conselho Consultivo, sendo o primeiro o seu organismo máximo. Dispõem, também, de Procuradoria, Auditoria, Corregedoria e Ouvidoria, sem prejuízo da criação de outras unidades necessárias ao desempenho das suas funções. As sessões do Conselho Diretor são públicas. E os conselheiros diretores são brasileiros de reputação ilibada, com formação universitária e elevado conceito no campo de suas especialidades, escolhidos pelo Presidente da República e submetidos à aprovação do Senado Federal.
Tudo isso ocorre nas agências reguladoras brasileiras desde os anos 1990. As decisões são colegiadas; o processo de decisão é variável, em função do impacto da decisão; utilizam grupos consultivos; atos e mecanismos são submetidos à consulta pública, antes da decisão; e o período de carência entre a tomada de uma decisão e sua entrada em vigor, dá oportunidade às várias partes afetadas de se manifestar.
O delineamento do perfil jurídico das agências reguladoras no país reside em premissas extraídas do próprio sistema constitucional brasileiro. Tanto que a competência normativa da União não compreende apenas a edição de leis, mas também a edição de normas hierarquicamente inferiores, desde que não exorbitem do poder regulamentar. A regulamentação, em nível infralegal, cabe ao Poder Executivo (exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado).
Diante das circunstâncias, cabe-me repetir o final do meu artigo de 26/09/2022: “A conclusão possível é que, eventualmente, alguns agentes incomodados buscam a revisão do papel das agências reguladores, supostamente assentados no fato de que elas funcionam como órgãos de Estado, portanto imunes à eventuais tentativas de interferências políticas em suas decisões puramente técnicas que, hoje, garantem a estabilidade regulatória e tanto ajudam no bom funcionamento do mercado e, consequentemente, a atração de investimentos.”
(*) O autor é Engenheiro Eletricista. Foi ministro de Estado das Comunicações e presidente da Anatel.