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Revisão do Marco Civil mira Facebook e YouTube, mas fere o ecossistema da Internet brasileira

O primeiro dia de debates promovido pelo Supremo Tribunal Federal sobre remoção de conteúdos da internet trouxe contribuições importantes para um assunto que vai além da discussão pelo Judiciário. Entre as principais, o alerta que vale para os ministros do Supremo, mas também para os parlamentares no Congresso Nacional, de que decisões que miram no Facebook e no YouTube terão impacto muito mais amplo. Em que pese a dimensão das grandes plataformas, a internet é feita também por milhões de sites, blogs, serviços online que em nada se assemelham às big techs. 

“A internet brasileira não é uma big tech. E quando analisamos a regulação da internet, existe sempre o risco de que os padrões que aplicamos a essas empresas, por serem as mais utilizadas, serem as que mais conhecemos, faz com que a alça de mira sobre um desenho regulatório, sobre uma decisão judicial, migre para essas formas. E essa é uma armadilha. Estamos falando de um ecossistema bastante abrangente que é afetado pela decisão sobre o artigo 19”, destacou o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, Carlos Affonso Souza, ao falar em nome da Associação Brasileira de Internet, Abranet. 

Não foi o único. A constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, a Lei 12.965/14, tem impacto em todo mundo que usa a rede no Brasil, como também lembrou o advogado Marcel Leonardi, pelo Instituto de Advogados de São Paulo. “Não é um debate sobre o destino jurídico de grandes plataformas ou de big techs, mas é uma decisão que vai afetar o futuro da internet no país. Vai afetar cada serviço, site, aplicativo, plataforma e usuário. Eventos trágicos como 8 de janeiro compreensivelmente motivam o Judiciário e o poder publico a encontrar respostas rápidas. Essa é uma tentação que deve ser resistida.”

Afinal, destacou, sem o artigo 19 não existiriam sites de reclamações de consumidores, de avaliação de comida, ou mesmo de comentários em consultas públicas sobre propostas de regras para este ou aquele segmento. Tampouco existiriam sites como a Wikipedia. Como bem lembrou o diretor presidente do NIC.br e pai da internet brasileira, Demi Getschko, só de endereços .br são mais de 5 milhões na internet. Se Google e Facebook, alças de mira, têm capacidade financeira para suportar qualquer regulação, o mesmo não acontece com a maioria deles. 

“Nas boas intenções existem riscos não pensados. Querer resolver um problema de acumulo de concentração aumentando o poder desse pessoal é complicado. Certamente o problema é mais cultural e educacional. A internet deu voz a milhões de indivíduos, o que é excelente. Mas é uma voz cacofônica, fala-se muito mais do que se escuta, e isso é algo que lentamente pode chegar a um ponto de equilíbrio. A internet é um espelho da humanidade. Se quebrar o espelho, não muda a humanidade”, lembrou Getschko.


Como registrado pelo placar do IST/Rio, a partir de cada manifestação no STF, há uma forte maioria de posições em favor da constitucionalidade do artigo 19. Poucos a se manifestarem de forma contrária ao artigo19. Entre eles, o advogado de uma das partes, que busca indenização sob alegação de que o Google demorou 28 dias para remover um perfil ainda do finado Orkut. Mas também as grandes empresas de mídia do país, representadas pela Abert (televisão) e ANJ (jornais). 

Da parte do governo, que prepara um projeto de lei sobre a regulação das plataformas – e que deve ser incorporado ao PL 2630/20 – prevaleceu uma visão neutra sobre o artigo 19. O secretário de políticas digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, João Brant, atacou o artigo 19 para dizer que ele “autoriza a omissão das plataformas digitais”. Segundo ele, “elas são desobrigadas de agir contra conteúdos ilegais e nocivos justamente em um ambiente onde apenas elas têm condições de atuar. Não há obrigação de cuidado, zelo e devida diligência. O modelo atual gera incentivos que devem ser reconhecidos e enfrentados.”

Mas ele mesmo reconheceu que tornar esse trecho legal inconstitucional seria uma encrenca. “Não nos parece um bom caminho adotar um entendimento que inverta em 180 graus o regime atual. Estabelecer uma plena responsabilidade objetiva às plataformas poderia trazer consequências problemáticas e igualmente negativas. Entre o modelo atual de responsabilidade praticamente nula e o modelo de total responsabilidade objetiva há uma gradação de tonalidades que podem garantir arranjos que poderiam produzir melhor equilíbrio entre direitos”. 

Como defendido por diferentes participantes, um melhor equilíbrio estaria em se preservar o artigo 19, mas ampliar as exceções – ou seja, o rol de conteúdos sujeitos a remoção imediata, a partir de notificações extrajudiciais, a exemplo do que está previsto no próprio Marco Civil para os casos de abuso sexual – ou no que se convencionou chamar de ‘pornografia de vingança’. Ou, como também já existe na legislação, casos de exploração de crianças. 

A dificuldade nesse caso é definir claramente essas exceções. “É possível que se crie novas situações específicas diferentes da regra geral, mas com o limite de que sejam objetivas. Pornografia de vingança é facilmente identificável. Quem olha sabe que é”, destacou o advogado e pesquisador do tema Ronaldo Lemos.  Afinal, remover o artigo 19 é dar às plataformas o poder de decidir o que é ou não publicável. E, como ressaltou Lemos, “não se limita o poder das plataformas aumentando o poder das plataformas”. 

Como se viu nas queixas dos jornalões e emissoras de TV, mas não apenas, há uma parcela de desconhecimento (na melhor das hipóteses) sobre a internet. Por exemplo, se ouviu na audiência que o grande problema são publicações anônimas ou por robôs – em um aparente desconhecimento de que a internet é,  por essência, uma rede de controle, ciber, e que, anônimo ou não, é possível identificar quem criou certo perfil ou disseminou certo conteúdo. 

O representante da Abert, Marcelo Lamego, chegou a sustentar que se TVs e jornais são plenamente capazes de mediar o conteúdo que transmitem ou publicam, arcando com a responsabilidade pelas escolhas, as plataformas online certamente podem fazer o mesmo. Só esqueceu de dizer que uma emissora de TV transmite, no máximo, 24 horas de conteúdo por dia. O YouTube recebe 400 horas de conteúdo novo a cada minuto. Moderação de conteúdo em imensas quantidades é algo que escapa dos discursos a favor de soluções simples. E soluções simples não combinam bem com problemas complexos, como concluiu Caff Souza: 

“Existe uma insatisfação com a forma que se dá a moderação de conteúdo, que deveria ser mais informativa, transparente, coerente. Esse é um ponto próprio para a regulação da internet, na mira do Congresso Nacional. E esse talvez seja o nó górdio da questão. Essa é uma questão complexa que não vai ser resolvida de forma simples.”

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