Opinião

Aeroportos e o reconhecimento facial

Volta e meia aparecem iniciativas levantando a bandeira do fim do uso de papel, ou de documentos físicos para o reconhecimento de pessoas. A migração da documentação em papel para a versão digital tem acontecido de forma gradual, como está sendo com a Carteira Nacional de Habilitação e o que se espera que aconteça com o documento de identidade também.

Mais recentemente ganhou destaque a defesa do fim do passaporte de papel feita por representantes da Associação das Empresas de Transporte Aéreo (Iata) nas Américas. Segundo o argumento defendido na matéria “Setor aéreo quer aposentar passaporte de papel e adotar reconhecimento facial”, no jornal Folha de S. Paulo, o papel não serve mais por não ser sustentável, atrasar processos e gerar mais custos. A solução, defendem, é o uso de tecnologias de reconhecimento facial.

Uma discussão importante e recorrente entre pesquisadores e especialistas são os potenciais vieses cometidos pelas tecnologias de reconhecimento facial, como viés e imprecisão nos resultados. A defesa da substituição do passaporte pelo reconhecimento facial propõe o fim do documento físico, deixando o processo de verificação da identidade totalmente dependente da tecnologia.

Além disso, a proposta desconsidera o impacto dessa medida na população com menos acesso a recursos tecnológicos. Cerca de um a cada cinco brasileiros, sequer tem acesso à internet, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e ainda existem pessoas que enfrentam dificuldade em usar essas tecnologias ou que não possuem interesse em fazer essa migração.

O que precisa ser destacado é a importância efetiva da implantação da tecnologia para o setor aéreo. A diminuição relevante do tempo gasto com o fluxo de pessoas nas aduanas permitirá que elas passem mais tempo em freeshops consumindo produtos. Essa é uma prática que muitos aeroportos ao redor do mundo vêm fazendo, inclusive um dos mais famosos nesse aspecto é o dos Emirados Árabes.


Portanto, antes que qualquer sistema de reconhecimento facial seja instalado, é preciso considerar e estudar os seus impactos. Esse tipo de proposição deve considerar os riscos e pensar: – É possível mitigá-los? – Existem outras opções disponíveis e quais são os riscos que elas apresentam?

Uma forma de iniciar essa discussão é pensar em elaborar um Relatório de Impacto a Proteção de Dados (RIPD) e trazer outros atores para a discussão. A conversa deve englobar mais órgãos da esfera pública, ter uma perspectiva multisetorial e evitar estar limitada a uma conversa apenas entre governo e empresas.

Seguindo essa premissa, é ideal que medidas que exijam outros recursos, como smartphones e conhecimento do uso de determinadas plataformas, sejam adotadas como alternativas e não como substitutas exclusivas.

Da mesma forma, a fim de preservar a sua privacidade, cada cidadão deve ter assegurado o seu direito de se recusar a utilizar o serviço de reconhecimento facial, bem como compreender a decisão automatizada que, por exemplo, pode negar acesso a essa pessoa no momento do check-in ou embarque.

A adoção de medidas de identificação de usuários de qualquer serviço público deve sempre ter como atributo fundamental a acessibilidade do maior número de pessoas, assim como, o movimento de inclusão, a fim de que todos possam exercer os seus direitos, desde o da privacidade até a liberdade de ir e vir quando se decide viajar de avião, por exemplo.

Por tudo isso, é evidente que o processo para adotar uma nova medida de identificação de cidadãos depende de muito mais estudo e análise, sobretudo em áreas tão importantes como aeroportos. Qualquer decisão mal calculada pode resultar na lesão e no cerceamento de direitos fundamentais, portanto, avaliar riscos, mitigá-los e resguardar direitos é o caminho mais seguro para a implementação desse tipo de tecnologia.

Maria Cecília de Oliveira Gomes é Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da USP, Professora do Data Privacy Brasil,  Professora convidada da USP, PUCRS e de outras instituições de ensino. Foi Pesquisadora Visitante na Data Protection Unit do Council of Europe (CoE) na França. Foi Pesquisadora Visitante no European Data Protection Supervisor (EDPS) na Bélgica. Pós-graduada em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

  

Botão Voltar ao topo