Opinião

Novo app de combate à COVID-19 une Google e Apple: O que esperar?

Se você está lendo esse texto em sua casa, existe uma grande possibilidade de que meses atrás essa leitura fosse realizada no seu período de almoço, no trabalho, no intervalo entre suas aulas ou até mesmo dentro de um ônibus enquanto se desloca de um compromisso para outro. Provavelmente, outras pessoas estariam ao seu lado em cada uma dessas atividades tão corriqueiras, num passado tão recente. Agora, você está, preferencialmente, na sua casa.

O fato de você, leitor, estar em casa agora é um reflexo claro da pandemia global que vem assolando o mundo nos últimos meses. Até o presente momento, mais 2 milhões de pessoas já foram infectadas pelo novo COVID-19, sendo que dessas, quase 150 mil morreram em decorrência das complicações da nova doença. Apesar de políticos, economistas, médicos e tantos outros profissionais tentarem lidar com as incertezas provocadas pela doença, o amanhã é dotado da certeza de que o mundo não será o mesmo. Essa certeza é resultado da análise histórica de outras pandemias que abateram o mundo.

Seja a Peste Negra, a Tuberculose, a Gripe Espanhola ou qualquer outra doença pandêmica, é possível rastrear reflexos históricos na sociedade contemporânea, pois doenças que atingem a seriedade de uma pandemia ou epidemia alteram drasticamente o hoje e guiam o amanhã do desenvolvimento da raça humana.

Por vezes, o impacto da doença é claro e presente nos livros de história. A Peste Bubônica, por exemplo, devastou o Império Bizantino no século VI, impedindo a continuação da disseminação da cultura bizantina pelo planeta. A contribuição dessa doença para a queda do poderoso Império Bizantino é tanta que frequentemente a chaga é referenciada como “Praga de Justiniano”, em referência ao Imperador Justiniano.

Todavia, certas vezes os reflexos de doenças pandêmicas na sociedade são sutis, porém duradouros na forma como nos estruturamos e organizamos para o desenvolvimento contínuo e saudável. O surto de Peste Negra na Europa entre os anos de 1347 a 1351 causou entre 75 a 200 milhões de mortes. Nesse período, os governantes se viram em posição de completa impotência frente aos efeitos dilacerantes da doença. Com as mortes aumentando em níveis preocupantes e sem perspectiva de encontrar uma cura imediata, o embrião que daria origem ao conceito de Saúde Pública nasceu nesse momento, com verdadeiros regulamentos sobre a peste e instituição de outras medidas que visavam lutar contra a disseminação da doença.


A primeira quarentena foi realizada no chamados “lazzarettos”, ilhas que navios deixavam seus tripulantes afastados da cidade por quarenta dias, afim de diminuir a proliferação da doença. Por mais que a base teórica que motivou a quarentena não seja científica, apoiando-se na Bíblia para determinar esse período de afastamento (o número “40” na Bíblia é frequentemente ligado ao conceito de “Purificação”, como alusão aos 40 dias que Moisés ficou no Monte Sião antes de receber os 10 mandamentos), a medida, ao sabor do acaso, acabou sendo bem sucedida, visto que o período de incubação da doença era menor do que os 40 dias. De certa forma, medidas de Saúde Pública se tornaram, com o impulso da pandemia, parte integrante do conceito atual de Estado.

Ainda longe da produção de uma vacina eficiente para controlar o progresso do COVID-19, Estados ao redor do mundo se movimentam para manter funcionando uma sociedade extremamente fragilizada pelas incertezas dos efeitos da doença.

Frente às outras pandemias citadas, já temos larga vantagem nas linhas de frente da guerra, com a ciência mais bem desenvolvida e com o emprego da tecnologia como ferramenta essencial para a vitória da humanidade. Tecnologia que, de fato, já começou a ser utilizada como mecanismo de auxílio para a aplicação das medidas impostas pelos Governos.

No Brasil, o Ministério da Saúde lançou um aplicativo de celular com o objetivo de conscientizar e trazer informações para a população acerca do COVID-19. Inúmeros Governadores de Estado do Brasil também utilizaram dados de rastreamento de celulares para monitorar o isolamento da população durante o período de quarentena.

Não só o Poder Público se vale das capacidades da tecnologia para o combate. Recentemente, as duas gigantes da tecnologia Google e Apple juntaram esforços para desenvolver uma nova ferramenta para o combate contra o COVID-19. Por meio de esforço conjunto, as empresas anunciaram o desenvolvimento de um aplicativo de celular, posteriormente podendo ser assimilado dentro de aplicações governamentais, que funcionará tanto para o iOS como para o Android, e realiza “troca de chaves” (códigos aleatórios unitários de identificação) por via da tecnologia Bluetooth entre os dispositivos próximos que fiquem por pelo menos dez minutos em proximidade.

As chaves recebidas pelo usuário serão armazenadas apenas em seu dispositivo pelo período de 14 dias, não existindo um servidor central, e caso uma pessoa que utilize o app declare que está infectada, ela poderá autorizar o app a alertar as pessoas que estiveram próximas a ela nos últimos 14 dias. O alerta, segundo as desenvolvedoras, não terá qualquer informação que facilite a identificação do emissor do comunicado.

Os detalhes do aplicativo ainda são limitados, visto que seu desenvolvimento ainda está em curso e se espera o lançamento a partir de maio, porém certas questões são de extrema urgência no que toca à utilização da ferramenta e suas consequências.

O que se sabe é que no primeiro momento o usuário terá de fazer o download do aplicativo, e no futuro a função poderá estar integrada ao sistema operacional do celular. Também será necessário o consentimento do usuário para a utilização da aplicação.

Ainda que utilizar o anonimato na identidade de quem declarou o contágio seja uma boa prática, a simples utilização do aplicativo já possibilita a existência de vários cenários no futuro.

Digamos que amanhã a quarentena seja “relaxada” com o pretexto de utilização do aplicativo nos celulares da população como medida mais eficiente de combate ao COVID-19.  Pode  o  Estado  tornar  o  uso  do  aplicativo  uma  Lei,  instituindo  dever  para  toda a população?

Na vida privada os possíveis impactos são inúmeros: Pode um estabelecimento barrar a entrada de alguém que tenha recebido o alerta de contágio? Poderá a demonstração de “imunidade aparente”, ou seja, a não acusação de contato com infectados, no aplicativo ser requisito para a aplicação em empréstimos bancários e outros tipos de relações de confiança a longo prazo? Poderá a pessoa que receber o alerta se abster de tomar medidas como a realização de exames?

Em síntese, considerando todo o corpo da sociedade: Poderia esse aplicativo ser utilizado como um mecanismo de segregação na sociedade? Ainda, qual o reflexo dessa medida de combate à proliferação de doença na casta mais desfavorecida da sociedade, daqueles que não tem qualquer remota possibilidade de ter um celular? Poderia a doença, quando erradicada entre as pessoas de renda média e superior, se alastrar por entre o círculo social daqueles que não tem o acesso ao aplicativo para manter maior atenção às suas possibilidades de contágio?

Assim como os impactos do COVID-19 serem ainda imprecisos na economia, política e na saúde, pode se dizer o mesmo quanto aos seus impactos na tecnologia, o que é igualmente preocupante. A mera existência de um aplicativo que monitore a simples possibilidade de contágio já representa claro perigo e relativização da privacidade, ainda que sob o nobre pretexto de assegurar a saúde e bem-estar da sociedade como um todo.

Não há dúvidas quanto à eficiência potencial do aplicativo no combate atual contra a transmissão do COVID-19, todavia, assim como todas as pandemias, existirá o momento da vitória. Retomando o exemplo do surto da Peste Negra, a doença também serviu como pretexto do governo em aplicar medidas violentas e coercitivas para assegurar seus objetivos.

Cabe então, a ponderação: Será essa “arma” aposentada com a vitória ou moldada para outros fins, como o controle da propagação de outros fatores sociais?

* Rafael Pistono
Sócio da área de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações do escritório CTA Advogados. Possui ampla experiência em assessoraria de assuntos regulatórios, contratuais e judiciais no setor das TICs. Vice-Presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação e Inovação da Ordem dos Advogados do Brasil. Especialista em Direito Digital e Membro da IAPP – International Association of Privacy Professionals tem liderado inúmeros projetos de conformidade às regulamentações de privacidade e proteção de dados. Membro do Conselho Consultivo do TELCOMP – Associação de Operadoras de Telecomunicações Competitivas. Ex CEO da Angola Cables, liderou a operação de construção e exploração dos cabos submarinos de fibra ótica SACS e MONET, além do DataCenter Angonap.

* Marcus Marins
Integrante da equipe d e Tecnologia, Mídia e Telecomunicações, com larga experiência em programação e novas tecnologias.

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