A atuação da Anatel no combate às Box TVs clandestinas, o chamado Gatonet, tem se intensificado nos últimos anos. Entre janeiro e agosto de 2023, a agência apreendeu 1,4 milhão de aparelhos e bloqueou 743 endereços e 54 domínios. Sua medida mais efetiva nesse sentido, porém, foi a criação, em setembro último, de seu laboratório antipirataria que, dentre outros, em operação realizada em outubro, teria bloqueado 80% das box tvs que transmitiam sinal ilegal.
Houve ainda, no mês seguinte, a aplicação da primeira multa a uma pessoa física, por conta da comercialização de dispositivo não homologado – apesar de, na região da Santa Ifigênia, na capital paulista, a comercialização seguir abertamente. Desde março, essas ações passaram a incorporar a colaboração compulsória dos provedores de Internet.
A agência tem aberto processos em seu sistema SEI no âmbito de seu “plano de ação para combate ao uso de decodificadores clandestinos do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC)”. A partir daí, encaminha solicitações para que alguns ISPs apresentem a relação de pessoas que estavam online em períodos específicos sobre um determinado IP. Por vezes, o pedido identifica a porta de acesso utilizada.
Não raramente, investigações criminais são dificultadas por conta do uso ainda significativo entre ISPs de menor porte do padrão IPv4 que, sobre o CGNAT, viabiliza de centenas a milhares de conexões sobre um único IP. Embora seja uma alternativa econômica para os provedores, por possibilitar o fornecimento de grande número de acessos sobre poucos blocos de IPs, traz uma série de desvantagens na comparação com seu sucessor, o IPv6. No caso de apurações relacionadas a delitos, a principal é a identificação do log de um investigado específico.
Não é o que ocorre com as demandas que a Anatel tem encaminhado. Até por conhecer a realidade do mercado, as informações solicitadas pela agência referem-se a grupos de pessoas que estavam online em determinados horários e datas sobre um mesmo IP.
Convém, no entanto, que ISPs realizem o quanto antes a migração para o IPv6. Além da dificuldade em se individualizar dados de pessoas investigadas pela Justiça e pela Polícia Civil e, dessa forma, comprometer o cumprimento de determinações judiciais, o IPV4 sobre CGNAT traz uma série de desvantagens na comparação com seu sucessor.
Uma delas é que o uso do padrão antigo pode limitar o mercado do ISP. Por exemplo, para indústrias e outras empresas que utilizam o IoT, o IPv4 sobre CGNAT compromete a comunicação entre dispositivos. Outro ponto é que seu sucessor proporciona baixa latência, indispensável em diversas aplicações, como manutenção preditiva, por exemplo.
A permanência no padrão antigo, que proporciona conexões de qualidade inferior, também representa desvantagem competitiva já que, conforme estudo apresentado recentemente por Huawei, Anatel e Inatel, a adoção do IPv6 no país tem acelerado. Seu uso entre os que compõem o ecossistema da Internet no país foi, entre abril de 2023 a fevereiro último, de 43% para 48%. Outro ponto é a dificuldade em se obter blocos de IPv4.
Conforme o NIC.br, teriam se esgotado na região da América Latina e Caribe ainda em 2020. Como alguns retornam ao mercado, ainda há solicitantes: eram 1.006 provedores em março, quando a espera do primeiro da fila se aproximava dos 800 dias. Novos demandantes só serão atendidos a partir de 2029, de acordo com o órgão.
Também resultante da falta de blocos de IPv4, surge uma prática de mercado que pode resultar em dificuldades para que um provedor atenda às demandas da Anatel. Como o Registro.br limita o número de lotes a serem fornecidos a cada empresa, alguns ISPs valem-se de um ou mais CNPJs para adquirir volumes maiores que o teto estabelecido pelo órgão para cada demandante.
Ocorre que algumas dessas empresas não dispõem de autorização para prestarem SCM e, valendo-se de artifícios, conseguem obter lotes de IPs burlando as exigências do Registro.br. Para essas, o atendimento imediato à demanda da agência acaba por configurar autodenúncia. Nestes casos, antes de enviar as informações solicitadas, deve-se buscar a regularização. A autorização costuma ser concedida no mesmo dia do envio de dados e documentos à autarquia.
As demandas da Anatel, assim como as do Poder Judiciário, sempre devem ser atendidas pelos provedores. Solicitações feitas pela Polícia Civil só têm caráter compulsório se acompanhadas de determinações judiciais. Recomenda-se, porém, que, de acordo com o delito investigado – informação que nem sempre é revelada ao ISP –, haja colaboração. É o caso, por exemplo, do risco de ataques em escolas, que, a partir de ocorrência em Santa Catarina em março de 2023, mobilizou autoridades na tentativa de impedir a repetição de episódios semelhantes. Há também casos em que os investigadores revelam que a apuração se refere, por exemplo, a um sequestro em andamento. Exigir uma determinação judicial para revelar um IP em casos assim atrasa a captura de criminosos e coloca pessoas em risco.
A atuação da Anatel contra a pirataria no fornecimento de conteúdos audiovisuais configura uma das inúmeras situações em que provedores veem-se obrigados a adequarem-se à regulamentação que rege suas atividades.
* Raphaelle Timporim Militão Ferreira é integrante da equipe jurídica da VianaCom, consultoria especializada na regularização de ISPs