Governo usa medo de ataques a escolas para regular internet via portaria ministerial
Em resposta aos ataques em escolas do país, que causaram mortes, e de ameaças de outros, o Ministério da Justiça baixou nesta quarta, 12/4 – com validade a partir de quinta, 13/4, data da publicação – uma portaria com uma série de medidas para obrigar as redes sociais a removerem “conteúdos ilícitos, danosos e nocivos, referentes a conteúdos que incentivem ataques contra ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”.
“Há uma situação emergencial, que tem gerado uma epidemia de ataques, ameaças de ataques, engendramento de ataques, assim como difusão de pânico no seio das famílias e das comunidades escolares. Nesse contexto, resolvemos editar uma portaria que traz medidas práticas, concretas, a fim de que haja uma regulação desse serviço prestado à sociedade, especificamente no que se refere à prevenção de violência contra escolas”, disse o ministro Flávio Dino, ao anunciar as medidas.
A portaria se sustenta especialmente sobre o Código de Defesa do Consumidor, a partir da leitura de que redes sociais são serviços. Ela determina à Secretaria Nacional do Consumidor que abra processos administrativos contra as redes sociais de forma a exigir ações das empresas, sob o risco de multa ou até mesmo a suspensão das atividades. Nesses processos, serão requisitadas:
“I – as medidas proativas tomadas para limitar a propagação desses conteúdos;
II – o atendimento das requisições pelas autoridades competentes;
III – o desenvolvimento de protocolos para situações de crise; e
IV – outras medidas cabíveis.”
Adicionalmente, a Senacon vai exigir relatórios das plataformas sobre:
“I – a concepção dos seus sistemas de recomendação e de qualquer outro sistema algorítmico pertinente;
II – seus sistemas de moderação de conteúdos;
III – os termos e políticas de uso aplicáveis e a sua aplicação consistente; e
IV – a influência da manipulação maliciosa e intencional no serviço, incluindo a utilização inautêntica ou da exploração automatizada do serviço, bem como a amplificação e difusão potencialmente rápida e alargada de conteúdos ilegais e de informações incompatíveis com os seus termos e políticas de uso.”
Paralelamente, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, também do MJ, vai “instituir um banco de dados de conteúdos ilegais” com os conteúdos que deverão ser removidos. A portaria em si não fixa em quanto tempo, mas o ministro Flávio Dino indicou que será adotado o mesmo critério do Tribunal Superior Eleitoral para exigir remoção de fake news nas eleições: duas horas.
“Vamos notificar para a retirada imediatamente – imediatamente mesmo, não dias, mas horas. Provavelmente vamos adotar o mesmo parâmetro do TSE, duas horas. Não havendo cumprimento, multa e, até o limite, a suspensão das atividades da empresa, não só daquele conteúdo. É uma medida firme e proporcional diante da gravidade”, disse o ministro.
Nessa seara, a portaria se vale da “interpretação sistemática dos artigos 19 e 21 do Marco Civil com a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil e os princípios gerais de direito, pela qual se conclui que não é possível eximir as plataformas de redes sociais da responsabilidade e da obrigação de prevenir a disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos”.
O que o MJ considerar como ilegal também poderá ser marcado, por exemplo, com uso de hash, de forma a que o conteúdo seja removido automaticamente – mais ou menos como acontece com conteúdos protegidos por direito autoral (e que causam inúmeros erros, mas o governo não discorreu sobre essa parte).
Em outro ponto controverso, a Senasp “deverá orientar as plataformas a usar como parâmetro para a indisponibilidade, ou para a remoção de que trata esta Portaria, a existência de conteúdos idênticos ou similares àqueles cuja exclusão tenha sido determinada no âmbito da Operação” Escola Segura.
Adicionalmente, o governo quer que as plataformas sejam mais ágeis e prestativas para fornecer “dados que permitam a identificação do usuário ou do terminal da conexão com a Internet daquele que disponibilizou o conteúdo” – ponto para o qual já existe previsão legal no próprio Marco Civil da Internet.
Uma das novidades é que a portaria prevê que as redes sociais devem “impedir a criação de novos perfis a partir dos endereços de protocolo de Internet (endereço IP) em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas referentes a conteúdos de extremismo violento que incentivem ataques ao ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”.
Por um lado, a reação do governo segue uma tradição no Brasil de se regular a internet a partir da comoção pública da hora. Desta vez, por conta de vários episódios das últimas duas semanas, desde a morte, além de cinco feridos, em uma escola de São Paulo, e mais recentemente o assassinato de cinco crianças em uma creche em Blumenau.
Que os casos de violência e terrorismo nas escolas são graves, não se duvida. E o precedente de legislar sobre a internet no susto tem exemplos notórios, como a Lei 12.737/2012, mais conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que incluiu novos tipos penais, crimes informáticos, na legislação, em uma reação à invasão, furto e disseminação de imagens íntimas da atriz. O próprio Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), só ganhou força mesmo a partir das denúncias do espião Edward Snowden sobre a espionagem eletrônica generalizada praticada pelos Estados Unidos – inclusive contra a então presidente Dilma Rousseff. A principal diferença é que, até então, a regulação da rede se deu pelo Legislativo.
O novo precedente, porém, traz à tona a regulação por mero ato ministerial. Não surpreende, portanto, que militantes dos direitos digitais disparem críticas ao método. Para o diretor do InternetLab, Francisco Brito Cruz, “se se quer remover conteúdo por que não via cautelar seguindo reserva de jurisdição? Temos um sistema pra isso. O precedente firmado aqui é inacreditável. E a gente sabe que é possível se repetir. Nesse governo e em outros, enfim”.
Para o advogado e professor Ronaldo Lemos, uma portaria não pode dar poder para a remoção de conteúdos. “A força de execução específica desses dispositivos da portaria é zero. No entanto a possibilidade de responsabilizar o Twitter pela deterioração negligente do serviço pela Senacon é real”, apontou. “Nesse campo a Senacon tem competência para atuar administrativamente. Um produto inseguro que está sendo ofertado para milhões de pessoas e causando dano real pode ser processsado administrativamente e sancionado dessa mesma forma.”
Como destacou a integrante da Diracom e do Comitê Gestor da Internet, Bia Barbosa, “depois do anúncio do ministro Dino sobre a superportaria para notificar plataformas e ordenar derrubada de conteúdos, eu, se fosse o Orlando Silva, chutaria o balde: pra que um PL pra negociar com deus e o mundo se o governo vai lá e faz tudo numa canetada? #tátudoerrado”.
O deputado federal, relator do PL das Fake News, no entanto, preferiu ver apoio ao projeto: “O ministro Flavio Dino editou portaria para enfrentar onda de violência nas escolas. Muita gente me questiona se isso atropela o debate na Câmara sobre o PL 2630, que sou relator. Digo que não! Na verdade é mais um demonstração da urgência que tem a aprovação desse projeto.”